Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Bocage
Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!
Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até regia a mão do fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe é vedado,
Depois com ferros vis se vê cingido:
Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo da existência à morte!
Travam-se gosto, e dor; sossego e lida;
É lei da natureza, é lei da sorte,
Que seja o mal e o bem matiz da vida.
1
“Que seja o mal e o bem matiz da vida”
E desta forma a sorte se lançando
Num ar tempestuoso ou mesmo brando
Enquanto traz o ungüento diz ferida.
Assim nesta diversa variedade
Vê-se tanta alegria quão tristeza
Da mansidão imensa correnteza
Do sim ao não total diversidade,
O todo se moldando desta forma
A cada novo dia chuva e sol,
E nesta discrepância no arrebol,
Decerto se transmuda e se transforma.
Diferenças profundas ou sutis
Assim do bem, do mal, vário matiz.
2
“É lei da Natureza, lei da Sorte,”
A que permite a glória em abissais
Caminhos divergentes; demonstrais
Em vossos dias vejo vário Norte
Portanto em tais momentos divergentes
Angústias em sorrisos, sóis e luas
As almas demonstrando em cores cruas
Felizes ou quem sabe; penitentes.
Assim nesta suprem maravilha
Desfeita e recomposta a cada instante
Lapida-se deveras diamante
Vulgar cristal também decerto brilha.
As sendas percorridas sendo assim,
O início para alguns traduz o fim.
3
“Travam-se gosto e dor; sossego e lida”
No mesmo vão momento, sombra e luz,
Ao nada ou ao tanto nos conduz
A estrada que pensaras já perdida.
O quanto se fazendo do tão pouco,
O mundo perpetua dor e riso,
Assim inferno e limbo ou paraíso,
Enquanto já me curo, me treslouco.
Assisto ao mais perfeito ou tanto inglório
E sei que do talvez possa vir nada,
Ou tudo se fazendo desta estada
Diverso estoque traz o vivo empório.
Mesquinhas noites dizem dias bons,
Mudando a cada instante, ritos, tons.
4
“Este intervalo da existência à morte”
Permite que se veja e sinta tanta
Felicidade e dor enquanto encanta
Na imensidade plena nos comporte
Traçando assim real dicotomia
Versando sobre tudo em pouco tempo
Deveras alegria e contratempo
Mudanças onde tanto se porfia.
Gerando esta fantástica emoção
Do ser e do jamais alcançarei
Matizes diferentes, mesma grei
Transcorrem na diversa direção.
Aonde sendo cais, ida e partida,
Ao mesmo tempo encontro e despedida.
5
“Que variedade inclui esta medida”
Da sorte muitas vezes traiçoeira
E quando se pensando muda inteira
A sanha que pensara-se perdida.
Por vezes nosso rumo se transmuda
E sendo assim deveras mais fugaz,
Ao mesmo tempo o medo, angústia e a paz,
O quão se faz enorme ou tão miúda.
Estradas nos levando ao mesmo fim,
Percalços entre espinhos, pedras, urzes
E ledos caminhares traçam luzes,
Demônio se transforma em querubim.
Bendizes ou maldizes uma sorte
Que tanto desagrade quão conforte.
6
“Para que nosso orgulho as asas corte”
A vida nos prepara uma surpresa
Enquanto em tão diversa sobremesa
Por vezes o sorriso dita a morte.
Caladas noites, dias desumanos,
Hedônicos caminhos quando orgásticos
Deveras muitas vezes são sarcásticos
Mudando a todo instante velhos planos.
Riquezas e misérias costumeiras,
Matizes em prismáticos desníveis,
Momentos muitas vezes aprazíveis
Espinhos traduzindo estas roseiras.
Assíduas variantes de um delírio
Trazendo mil prazeres num martírio.
7
“Depois com ferros vis se vê cingido”
Podendo muitas vezes transformar
E quando se lapida maltratar
Deixando o original em triste olvido.
Por sortes tão diversas caminhamos
E temos nossos passos rumo ao nada,
Mudando a direção da velha estrada
Por vezes somos servos, somos amos.
E quando se percebe em rituais
Complexos nossos dias propagados,
O vento transformando nossos Fados,
Momentos dolorosos, magistrais.
Assim errôneos seres quais cometas,
Enquanto no vazio te arremetas.
8
“Onde o sol, bem de todos, lhe é vedado”
As sombras dominando este cenário
Ao mesmo tempo enquanto frágil, vário
Mostrando noutra face, transmudado,
A velha luminária se transforma
E quando se percebe mais sombria,
A vida gera a luz e se recria,
Na eterna mutação, que é lei e norma.
Perfaço a mesma estrada e nela vejo
As plantas entre inverno e primavera
Enquanto o sol ardente nos tempera,
O frio muitas vezes diz desejo.
Sincrônicos? Jamais. Disparidade
Ditando a mais sublime realidade...
9
“Como que até regia a mão do Fado”
Expressões diferentes traduzindo
O que talvez pareça ser infindo
E ao fim decerto está ora fadado.
O quadro se tecendo a cada dia
E nele as pinceladas são constantes,
Por quanto se percebem variantes
A sorte muitas vezes desafia,
E o senso se percebe inexistente
No quase e no tanto, muito além,
Divina discordância se contém
Por mais que alguma luz ainda tente.
Ao término da vida em inconstância,
Na morte única voz sem discrepância.
10
“Tal qual em grau venerando, alto e luzido”
O Fado transcorrendo em tempestades
Ao mesmo tempo quando mais agrades
Maior o temporal já pressentido.
Assisto á derrocada tão vulgar
Naufrágio da esperança, ancoradouro
Diverso do que outrora em nascedouro
Pudera ainda mesmo adivinhar.
Desespero gerado a cada queda
E nela outro momento mais profundo,
No qual sem ter defesas eu me inundo
Por mais que a própria vida, assim nos veda.
E o rumo variável do viver
Transforma medo em glória, dor/prazer.
11
“O mortal, sem querer é conduzido”
Dos píncaros aos vários abissais,
Momentos entre tantos temporais,
Depois o vento leva em vago olvido.
Somando estes tropeços com acertos,
Deveras poderemos perceber
Numa inconstância eterna o mesmo ser
Caminhos muitas vezes entreabertos.
Portais fechados, rotas discrepantes,
Formando e reformando em tantas cores,
Diverso do que outrora ainda fores
Verás novas estâncias por instantes.
Assíduas raridades, dias bons,
E duras tempestades noutros tons.
12
“Quão fácil de um estado a outro estado”
Mutáveis faces dizem este espelho,
E quando nele às vezes me aconselho
Percebo santidade num pecado.
Ousando ser feliz de vem em quando,
Teimando contra a força da maré,
Não sei o que deveras é; não é,
A cada novo tempo transformando.
Geração em geração se modifica
E o quanto do passado ainda trago,
Ao mesmo tempo é dano, duro estrago,
O dia após o dia se edifica.
E quando se percebe; nada mais
Do que pensara em cores magistrais.
13
“Quantas vezes, Razão me tens curado?”
O Amor que tanto atrai enquanto dói
Ao mesmo tempo tudo já constrói
Depois se vê deveras destroçado.
Assim nesta diversa maravilha,
O medo quando em luzes se transforma,
Mudando a cada instante a sua forma
Porquanto nova senda sempre trilha.
Pudesse ter nas mãos a direção
Qual fora um velho e bravo timoneiro,
Mas quando se mostrando corriqueiro
Rebenta num momento este timão.
E o tanto que pensara ser um cais,
Esbarra em tão diversos vendavais.
14
“Quantas vezes Amor, me tens ferido?”
E traças com terror o que era nobre,
A manta me aquecendo já descobre
E o frio novamente se é sentido.
Percebo nestas luzes tão complexas
Resíduos da sombria ingratidão,
Aonde se pensara no verão
Inverno traz tormentas desconexas.
Perfilo dor e pranto em pleno gozo,
E sinto quão diversa a vida traça
Às vezes se perdendo na fumaça
O quanto se pensara fabuloso.
Porém no amor insisto e não me canso,
Mesmo tempestuoso, frio ou manso...
De Praia para o mundo lusófono
VALMAR LOUMANN