As Artes São Irmãs
Gonçalves Dias
As artes são irmãs, e os seus cultores
Do fogo criador nas mesmas chamas,
Perante o mesmo altar, coroam-se, ardendo.
A mesma inspiração, que acende o estro,
Guia a mão do pintor quando debuxa
Do rosto nas feições o brilho interno,
Dá linguagem sublime à estátua muda,
Ou lânguida na lira se transforma
Em sons cadentes, que derramam n'alma
Idéias do prazer — do mal no olvido!
O mesmo entusiasmo as vivifica,
São iguais, são irmãs no amor do belo!
1
“São iguais, são irmãs no amor do belo!”
As Musas que me inspiram em meus versos,
Sentidos muitas vezes tão diversos,
Mas neles sentimentos eu revelo.
Melodias que chegam do passado,
Momentos que vivi, outros nem tanto,
Mas quando com ternura, em tento e canto,
Algum pedaço meu é revelado.
Os sonhos se traduzem por vontades,
Às vezes saciáveis, noutras não,
Porém eles deveras mostrarão
As sombras de prováveis realidades.
Assim do imaginário eu posso ver
Um pouco do que existe no meu ser.
2
“O mesmo entusiasmo as vivifica,”
Vontades e querências recolhidas
Durante as várias faces, tantas vidas
Aonde o pensamento se edifica.
Variantes entre tantos pensamentos,
Sentidos mais dispersos, suas somas
Permite este mosaico aonde tomas
As tuas decisões; dores e alentos.
Te entregando sem medo aos temporais
Verás neles lições para o que resta
Da vida mesmo quando mais funesta
Navegação ensina onde há um cais.
Assim nas discrepâncias se concebe
O ser que em ti agora se percebe.
3
“Idéias do prazer — do mal no olvido”
Enquanto a dor se torna mais presente,
Assim quando do gozo a vida ausente
Permite imaginar-se tão sofrido.
Mas quando uma alegria nos invade,
Decerto se esquecendo pouco após,
O rio se perdendo noutra foz,
Lembramos do que fora tempestade.
Não deixe que isto faça com que tudo
Pareça bem diverso, noutro fato,
Se em dores tão somente eu me retrato,
Deveras, sobre a vida eu já me iludo.
Caminho sobre brasas; sei das dores,
Mas também sei colher, da vida, flores...
4
“Em sons cadentes, que derramam n'alma”
Encontro uma real satisfação,
Vivendo claramente uma estação,
Realidade dói? Também acalma.
As cores de um outono, invernal frio,
Primaveril beleza, imenso sol,
O quanto se transforma este arrebol,
É como perceber um desafio.
Envelhecer com arte e galhardia,
Saber da mocidade com fulgor,
Matizes tão diversos de um amor,
Que a cada novo tempo, sempre guia.
E ter uma certeza nesta vida
Cada etapa terá que ser cumprida.
5
“Ou lânguida na lira se transforma”,
Ou trágica se faz a cada passo,
O quanto muitas vezes me desfaço,
Impede que se tenha a mesma forma.
Dicotomias trago em cada passo,
E nelas a melhor das decisões
Por vezes bem diversa do que expões,
Nem sempre o melhor rumo, ainda traço.
E vivo sem temer as tempestades,
Nefastas? Muitas vezes redentoras,
As horas mais doídas, sofredoras
Aquelas que nos dizem mais verdades.
Servindo de repasto para a dor,
Um novo amanhecer saber propor...
6
“Dá linguagem sublime à estátua muda,”
Cada momento aonde se entregando
Não sei se em temporal ou ar mais brando,
O tempo tão instável se transmuda.
E quando aprendo dele sem terrores
Amadureço em mim a própria morte,
E nela algum descanso que conforte
No renovar da vida, risos, dores.
Existo e sei que basta esta existência,
Se dela eu perceber quem mesmo sou,
Já sei qual o destino pr’onde vou,
O fim é do começo, a conseqüência.
Renova-se destarte eternidade
Gerando com fulgor, diversidade...
7
“Do rosto nas feições o brilho interno,”
Diverso do que às vezes se aparenta,
Aonde se diz paz é violenta
E aonde se diz glória, pleno inferno.
Somar as nossas tantas variantes,
Seguir por vezes mitos ledos, falsos,
Comuns na caminhada tais percalços,
Mudamos nosso rumo por instantes.
E quando se aproxima o fim da história,
O quanto nós já fomos, padecemos,
Permite ao marinheiro tantos remos,
Ou traçando uma linha merencória.
Às vezes num sorriso, lacrimejo,
E em lágrimas sacio o meu desejo...
8
“Guia a mão do pintor quando debuxa”
A soma de fatores mais diversos,
Assim quando eu componho tantos versos,
É como se imergisse em vária ducha.
Ourives da palavra, um escritor,
Usando seus disfarces nos permite,
Se acreditar além de algum limite,
Nas tramas deste insano sonhador.
O corte se bem dado do buril,
Traçando com beleza uma escultura,
Mas quando a mão se mostra fria e dura,
Por vezes o cenário se faz vil.
Não creia no que digo, mas me creia,
A mão traça diversa ou una teia.
9
“A mesma inspiração, que acende o estro,”
Por tantas vezes traça o desespero,
E quando noutra sanha me tempero,
Por vezes verdadeiro ou mais canhestro.
Se o peso do que vivo influencia
Talvez o que não viva pese mais,
Criando do vazo, os temporais,
Palavra dita a norma e cadencia.
Apego-me ao não ser enquanto sigo,
E sigo sem saber quem mesmo sou,
Errático caminho se mostrou
Deveras muitas vezes meu abrigo.
Ilusionista, sim, porém nem tanto,
Retratando minha alma quando canto?
10
“Perante o mesmo altar, coroam-se, ardendo”
Demônios, querubins, várias figuras,
Palavras que clareiam sendo escuras,
Momento doloroso ou estupendo.
Nefastas maravilhas, luzes tantas
Bebendo desta imensa liberdade,
O quanto do vazio que me invade,
Permitem ser profanas, créus e santas.
Ecléticos caminhos num só rumo,
As cores se misturam neste prisma,
E quando vez ou outra uma alma cisma,
Nem sempre um andarilho, eu tudo aprumo.
A queda prenuncia a redenção,
Assim como um amor dita o perdão...
11
“Do fogo criador nas mesmas chamas,”
Encontram-se diversas fantasias
E quando delas novas tu recrias,
Revives do passado, luzes, dramas.
Tramas se entrelaçando, atemporais,
Existem desde quando existe o sonho,
O todo muitas vezes eu componho
Dos dias mais dispersos, tantos cais.
Apátrida emoção, vívida luz
Nas trevas a beleza incomparável,
Assim como um reflexo do tocável
Efeito tão complexo reproduz.
Nas crenças, ódios, medos e rancores,
Nos sonhos, nos anseios, nos amores...
12
“As artes são irmãs, e os seus cultores”
Transformam qualquer forma num tesouro,
Das tantas emoções quando me douro,
Permito cultivar diversas flores.
E mesmo nas daninhas, meu alento,
Transito entre o fantástico e o real,
Portanto se feroz, tolo ou venal,
Nas tantas variáveis me sustento.
E bebo em goles fartos, outros dias,
Trafego em dissonantes maravilhas
Porquanto novos mundos sempre trilhas
Sabendo desde o eterno as melodias.
Infinitas verdades num só passo,
Num limitado espaço o mundo eu traço.
De Praia para o mundo lusófono
VALMAR LOUMANN