Era terrível se não houvesse amanhã.
Se soubéssemos que isto tudo, pum.
E as bibliotecas em chamas.
E os heróis sem nada a fazer.
E os poetas com dores intestinais.
Eu chupava um rebuçado e aguardava serenamente o desfecho, saldando os pecados, preparando duas mudas de roupa lavada, uns quantos cigarros para o caso de a viagem para o outro lado ser longa.
Depois ligava a uns bons amigos e contava-lhes a última adivinha do século
ao mesmo tempo que lhes recomendaria calma.
Afinal de contas amanhã vamo-nos todos encontrar. Só que em outro lugar.
Despedia-me dos pássaros e das árvores, olhava a terra com a leveza de uma música gregoriana,
aos meus vizinhos era um até já.
E, se ainda restasse um tempinho, terminaria um poema que anda comigo às voltas pelo mundo.
Algo sobre o amor de um peixe com uma gaivota.
Claro que tudo isto não passa de uma suposição já que ninguém vem cá dizer que esta loja universal vai encerrar para obras.
Divirto-me a calcular suposições,
a tirar partido da minha ironia.
A fé está criando versões do original.
Os homens lamentam-se por saberem que a vida não é uma vida inteira.
Bem, já estou atrasado, já escuto um comboio a apitar que, por certo, fascinado em cortar os montes e os céus.
Se não houvesse amanhã acenderia um cigarro com os dedos,
dizia a deus: espera aí que já vou,
corria até ao mar para lhe dizer: sinto muito.
A dúvida é sim a maior certeza.
Amanhã pode estar calor mas o frio conserva melhor, até os pensamentos.
Portanto, antecipo a minha morte para amanhã, porque hoje, ó porque hoje posso não estar aqui.