Olhou o espelho, como quem olha a pira funerária onde jazem os restos mortais, de um qualquer herói Celta ou Ibérico . Não que se considere heroína, pelo contrario, sempre fora a seguidora silenciosa de Reis sem trono. Voltou a mirar-se no espelho, desde pequena que sempre que se sentia perplexa, olhava o espelho, como se o reflexo frio que emana lhe desse as respostas que necessita, e hoje não era diferente. Desde há algum tempo que se sente vazia, aliás, essa sensação caminha a seu lado desde que se conhece, por breves períodos esquece-se dela, mas são tão ténues que a memória a trai.
Num novo olhar, desta vez mais demorado, repara nas pequenas rugas que circunscrevem o globo ocular, que afinal não são assim tão pequenas, apesar delas ainda consegue iludir aqueles que lhe tentam adivinhar a idade, idade essa que sempre fez questão de sublinhar, essa, uma das suas vaidades, dizer quantos anos tem e ver a cara de espanto de quem pergunta. Mas, as rugas estão mais profundas, a pele está baça, como envelheceu sem dar por isso. Será que não deu mesmo, ou será que se ilude a si própria.
Nesta manhã acordou com uma vontade louca de fazer algo de novo, lembra-se que antigamente dizia de si para si, um dia ainda farei tudo o que gosto de fazer, gosta de arte, gostava de visitar os grandes museus, gosta do mar pela manhã, um dia iria acordar na praia, iria ao municipal, ver uma opera famosa, iria ao teatro, ver Shakespeare, iria, sim um dia, iria ter alguém com quem repartir a vida, tempos houve em que esse acreditar a mantiveram de pé.
O que o tempo nos faz, até os sonhos corrói, e passamos de sonhadores a realistas frios e calculistas num estrelar de dedos.
De novo o espelho, olha-a como se não a visse, nas circunstancias da vida essa posição é confortável, olhar e não ver, mas ao espelho ela não perdoa, o espelho tem obrigação de a ver, real, tal como é.
Num movimento brusco vira-lhe as costas, pega na mala e sai porta fora, caminha como sonâmbula pelo bairro, ao fim de alguns minutos pára a olhar para uma montra onde num gesto de chamamento está exposto um cartaz de tamanho razoável onde se lê. Entre compre aqui o presente para o seu pai, dia 19 de Março é o dia do pai. Pai mas que pai, de pai só conhece o nome.
O espelho persegue-a, agora está estampado no vidro da montra, um ligeiro sorriso ao canto da boca, recorda-lhe o que alguém lhe dizia em criança, faz-te à vida que ela não se fará a ti. Vida, será a sua vida, trabalha feito uma condenada, passa mais horas no serviço do que em casa, o tal do serviço tornou-se a sua casa, essa é que essa. Não tem amigos, apenas conhecidos, as amigas quando se divorciou foram-se perdendo aos poucos, coisa que ainda não conseguiu entender, ás vezes pensa que é por inveja, têm inveja dela, ou por despeito, por ter feito o que muitas almejam fazer, e não são capazes, por medo, ou por conveniência. Resta-lhe duas ou três pessoas, mas todos demasiado ocupados, nesta era tudo e todos são demasiado ocupados. Depois existe outro inconveniente nos seus relacionamentos, tem um gosto apurado para o belo, e nos dias de hoje o banal e corriqueiro virou moda, não gosta de centros comerciais e os centros comercias são por excelência um ponto de encontro, ela não se enquadra em certas modas. Outra coisa que gostavam de lhe atirar à cara, tens a mania que és fina, antes fina que casca grossa, retorquía.
Andou mais uns metros. Parou como se tivesse sido apedrejada, deu meia volta e tomou o caminho de regresso a casa, pela cabeça deslizavam pensamentos a mil, que faz sozinha, porque não procura companhia, maluca, sim maluca, um destes dias está velha de vez e senta-se no banco da praça, a dar milho aos pombos, isto se o reumático não a prender a uma cadeira, ou pior a uma cama.
Nesse instante tomou a decisão mais importante nos últimos tempos da sua vida, pelo menos a que lhe parece mais importante, não pode continuar a passar os dias de descanso sozinha sem ter ninguém com quem falar, vai pegar no telefone, e vai convidar alguém para almoçar, melhor, vai mandar um email.
Entra em casa e senta-se frente ao computador, abre o correio electrónico e deixa correr o olhar pelos contactos, um a um, daqui a pouco decide a quem convidar, abre a página do site onde escreve, um sorriso aberto enche-lhe o rosto, estão lá todos, os seus amigos, tal como ela ali estão em casa, ali desabafam, conversam, chamam nomes uns aos outros, mandam beijinhos e abraços, mas estão juntos numa mesma realidade, a solidão.
Fecha o computador, e deita-se, são dez da manhã e só lhe apetece dormir, amanhã é dia de trabalho, vai ver os conhecidos, porque os amigos estão fechados dentro de um computador.
Antónia Ruivo.
Era tão fácil a poesia evoluir, era deixa-la solta pelas valetas onde os cantoneiros a pudessem podar, sachar, dilacerar, sem que o poeta ficasse susceptibilizado.
Duas caras da mesma moeda:
Poetamaldito e seu apêndice ´´Zulmira´´
Julia_Soares u...
Desde há algum tempo que tenho vontade de escrever sobre a mulher, uma das muitas que preenche o quotidiano citadino, nas suas mil histórias, nos encontros e desencontros do dia a dia, inicio aqui esse ciclo, quero deixar bem claro que esta mulher, porque vai ser sempre a mesma que a autora retrata, não é ninguém e poderá ser qualquer uma de nós, vou-me basear em factos concretos numa mistura dissimulada com o irreal, factos que qualquer uma de nós mulheres, pode viver com mais ou menos intensidade. Para escrever estes contos, tenho como primeira ferramenta a observação cuidadosa das realidades,tanto sociais como humanas.