Prosas Poéticas : 

A FAMÍLIA 33 (parte 3)

 
, que bonito né dizia Renato quando o farfalhar das folhinhas da praça parecia imitar um pau de chuva afinadíssimo, já não sabiam quantas vezes tinham estado naquele singelo matagal soltando os nervos e se libertinando da discórdia moderna, em pleno bairro de aristocracia paulistana, desandavam diria a vovó. Num carnaval decidiram dirigir até ouro preto, iam alugar uma casa por uma merreca e dividir em quase uma dúzia de camaradas. Prometia.
Lauro não tardaria a desvelar o primeiro revés de seus ensandecionismos iconoclastas pós-adolescentes, trêbedo mas ainda bastante minimamente consciente de si, às ruas sassaricantes do bloco itinerante, beijou uma moça feia que doía, mas achou ótimo, foi seu primeiro beijo na vida, assim numa feia desconhecida sem trocar uma mísera palavra. Mas este não seria ainda seu azar. Era o auge do carnaval, ele estava perdido há horas de seu grupo mas não estava nem um pouco preocupado com isso. Estava trilili, pra lá de bagdá, não só pelo coquetel de cachaças, catuabas e adendos, mas porque pouco antes da viagem, haviam comprado uma quantidade exuberante de erva.
Não era a melhor erva do mundo, mas o custo-benefício tinha sido inédito pra eles até então. A estúpida idéia de fazerem um lucrozinho repassando uma metade do quilo e meio não tinha sido nem de um nem de outro. Lauro e Renato eram tão inocentes quanto verdadeiramente puros de coração. Aquilo era talvez como uma tentação santificada, tirarem uma vantagem do fato já irreversível do vício contumaz. Óbvio, não eram tão idiotas a ponto de terem levado tudo pra outro estado, o grosso da matéria havia ficado bem escondido em casa, mas o prenúncio já se vai explicar.
Lauro perdido nas ladeiras de paralelepípedos tinha dois fininhos cochados no bolso, num pequeno frasco de plástico, originalmente lar de confeitos de chocolate, mas que parecia feito sob medida pra transportar sedas gomadas recheadas. Conheceu rapidamente três pessoas em meio à multidão, dois rapazes e uma garota, e papo vai papo vem o protagonista convidou os três a irem consagrar em algum lugarejo pacato da paisagem. Andaram uns cinco minutos e descobriram um pequeno beco. Vazio. Maravilhosamente vazio e tranqüilo. Não por menos.
Lauro levou o cigarrete aos lábios. Dava o primeiro trago, os quatros sentados à calçado do pequeno beco. Os três convidados sentavam-se à direita de Lauro. No que ele ia passar pro jovem ao lado, uma sensação estranha. O rapaz não pegou o baseadinho. Paralisado, com os olhos parecia apontar, sugerir que Lauro se virasse à esquerda, à face oposta. Virou o rosto. Um policial firmemente empunhava um trinta e oito poucos centímetros à frente da testa dele.
Entorpecido mas ainda lúcido, não pôde evitar o choque estapafúrdio, a surpresa estriquinante. A autoridade uniformizada berrava em plenos pulmões, arranhando a voz, pra que ele colocasse as mãos na cabeça e se virasse de costas. A velocidade do acontecimento fora tamanha que Lauro durante três segundos não teve reação. Olhou pra direita mais uma vez, num reflexo automático, e olhou novamente à esquerda, como tentasse se reanimar dum tilt. O policial mais uma vez bradou obtusamente pra que colocasse as mãos na cabeça e se virasse de costas pra ele, encarando a parede. Como parecesse o mais sensato a se fazer, colocou o beque, quase inteiro diga-se de passagem, no chão, e então levou as mãos à cabeça.
Talvez por não ter obedecido antes de cinco segundos, que foi o intervalo entre os dois gritos do fardado, considerou-se que ele havia desacatado a autoridade. Foi acusado de desobediência pelo policial, que então atirou-o contra a parece, aplicando uma carga de voltagem mediana na cintura de Lauro, com um pequeno aparelho eletrocutador, que aliás nunca fez parte do inventário policial e nem deveria fazer. Foi algemado e levado pra delegacia num camburão. Agora aquela cidade histórica parecia o fim do mundo.
Horas depois, havia assinado um papel que permitia sua liberação sob uma de duas opções: prestar serviço comunitário ou pagar uma multa de dois salários mínimos, por ter sido flagrado com cerca de um grama e meio de marijuana. Optou pela multa. Não seria fichado, o que era o menos pior. Andou alguns quilômetros pra chegar de volta ao centro urbano de ouro preto. Dessa vez foi direto pro pequeno pardieiro a que chamavam lar, contou o que passara aos amigos. Fizeram talvez o maior banza que já tinham feito na vida. Fumaram-no inteiro, talvez vinte gramas, em quatro ou cinco, na sala sem mobília, ao longo de uma hora e meia. O carnaval pra ele perdeu um pouco a graça depois disso. Quando voltou pra casa, viu-se obrigado a vender a grande quantidade de erva que tinha estocada, pra poder quitar às multas sem recorrer à família, a ninguém. Se resolveu. Anos e anos depois talvez os avós de Lauro descobrissem que ele havia sido capturado, mas tão distante ficara o evento, não faria diferença. O que era certo é que a partir de então, ele só compraria pra consumo próprio.
Foi também nessa mesma época que Lauro e Renato se apaixonaram de corpo e alma pela dança, pelo transe metalúcido do dance-floor. Aos poucos faziam contatos interessantes e com freqüência crescente entravam na faixa nas festas, por conhecerem os organizadores. Eram novos elos familiares.
A vida seguia. Lauro bombou uma ou duas matérias por excesso de faltas. Mas os escritos evoluíam e também os sonhos astrais. Produziu um disco todo com Thomas e conseguiram masterizar o trabalho no principal estúdio da américa latina sem custos, numa parceria que o dono do estúdio aceitou após ouvir durante três minutos aos primeiros segundos de cada uma das canções. A obra levaria anos pra vir a público, era um vinho valiosíssimo que agora repousava no mogno mais refinado. E a família de Lauro insistia que aquilo tudo era um absoluto esperdício de todas as possibilidades prósperas em que se havia investido. Mas ele não se esquecia da borboleta, e zaratustra o ajudava a conduzir passos leves sobre o espinhal embrenhoso da sociedade adestrada.









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Autor
alikafinotti
 
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