Vandalismo
Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos ...
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
Augusto dos Anjos
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“Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos”
Ao perceber inúteis as luzernas
Adentrando terríveis vãos, cavernas
Retratos de momentos tão medonhos.
Expondo à minha face tais paragens
Cenário distorcido em vagas luzes,
Arrebatando em mim diversas cruzes,
Soturnas e temíveis paisagens.
Das ânsias cintilantes fluorescências
E impávidas figuras caricatas
Em meio às gargalhadas e bravatas
Convites para os ermos das demências.
Afetam meu olhar e inebriantes,
Fulguram quais bisonhos diamantes.
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Fulguram quais bisonhos diamantes.
Olhares que me espreitam desta fera,
A solidão enquanto destempera,
Tranqüilizando ao menos por instantes.
Verdugos de nós mesmos, muita vez,
Alheios ao que possa ressurgir,
Ouvindo uma esperança além bramir,
Em novo dia, ainda, mesmo crês.
Adentro nos mistérios de minha alma
Masmorras, catedrais e ancoradouros,
Diversos caminhares, ritos mouros
Do quanto já vivera, medo e trauma
E quando me percebes arrebatas
“Templos de priscas e longínquas datas.”
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“Templos de priscas e longínquas datas”
Encontram no meu peito o esconderijo
E quanto aos meus anseios me dirijo
As dores se revoltam em cascatas.
E nesta turbulência mal convivo
Com todos os espectros que se hospedam
Caminhos usuais quebram, depredam,
E assim em meio ao caos eu sobrevivo.
Mortalhas entre pútridas carcaças
Somente me rondando pesadelos,
A cada nova noite revivê-los
Enquanto ao largo sei que ainda passas
E mesmo se presente; não me internas
Ao perceber inúteis as luzernas
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Ao perceber inúteis as luzernas
Estranho quando a luz em lusco fusco
Entranha muito além do que ora busco,
Traçando procissões raras, supernas.
Heréticos demônios coexistem
Com anjos muitas vezes mais profanos,
E os erros cometidos, meus enganos,
Ainda mesmo após, vivem, persistem.
Esboço reações, mas não prossigo
Etéreas maravilhas e abissais,
Nefastas hedonistas magistrais,
Ambígua sensação de caos e abrigo.
Insólito momento; desbaratas
“Onde um nume de amor, em serenatas.”
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“Onde um nume de amor, em serenatas.”
Ouvia-se deveras percebi
Esdrúxulos caminhos vêm a ti
Presenças tantas vezes mais ingratas.
Ascendo aos mais diversos elementos,
Na fúria deste vento, águas profundas
Incêndios invadindo quando inundas
Gerando paz em forma de tormentos.
Antíteses comuns de um sonho tosco,
A par destes incríveis contra-sensos
Os medos e os prazeres são imensos,
Luar mesmo que pleno, segue fosco;
E quando necessárias noites ternas
Adentrando terríveis vãos, cavernas
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Adentrando terríveis vãos, cavernas
Não pude perceber saídas, fugas
E quando ao enfrentar também refugas
Diverso da loucura que ora externas,
Incríveis vendavais, tormentas várias,
Estúpidas quimeras ancestrais
E nelas os diversos rituais
Mostrando faces torpes, temerárias.
Assiduamente entranham suas garras
E deixam cicatrizes tatuadas
Nas almas que circundam, destroçadas,
Enquanto as minhas pernas tu agarras
E incrível carpideira em vozes tensas
“Canta a aleluia virginal das crenças”.
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“Canta a aleluia virginal das crenças”
Espantosa quimera incendiando
Num panorama outrora bem mais brando
Gerando mais terríveis desavenças.
Assassinos, ladrões, répteis humanos
Arrastam-se entre fogos e demônios,
Explode emanação de seus hormônios
Alastram-se terrores, desenganos.
Fomentam temporais em vento forte,
Um bêbado funâmbulo caminha
E podre sensação que se avizinha
Prenunciando assim tortura e morte
No meio dos espectros mais bisonhos
Retratos de momentos tão medonhos.
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Retratos de momentos tão medonhos.
Asquerosas figuras, gargalhares,
Na cúpida ilusão, podres altares,
Arfantes emoções, terríveis sonhos.
E em meio às trevas surge esta satânica
Beleza que seduz e tentadora,
Dos males e dos gozos, genitora,
Em convulsão feroz, quase tetânica.
Esbarram-me cadáveres do anseio
Negado há tanto tempo, desde a infância,
Caminham com soberba e elegância
Não tendo dos espectros mais receio.
E o Demo fabuloso em tais bravatas
“Na ogiva fúlgida e nas colunatas”.
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“Na ogiva fúlgida e nas colunatas”.
Nefastos, gigantescos corvos vêm
Num crocitar constante, como alguém
Que risse destas cenas insensatas.
Vergastas soltas cortam todo este ar
E algozes em masmorras, cadafalsos,
Os pés em carne viva estão descalços
Ao longe sobre as trevas o luar
Num lusco fusco entranha este cenário,
Insanos os espectros de minha alma,
Que incrivelmente sinto bem mais calma,
Além do que pensara necessário
Especulares ritos quais miragens
Expondo à minha face tais paragens.
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Expondo à minha face tais paragens
Uma fantasmagórica impressão
Demarca a minha pele em abrasão
Fomenta o desespero; falsos pajens
Adentram o salão aonde a festa
Explode em cores fátuas e vulgares,
Diversas meretrizes, lupanares
Resultam tentações árduas, funestas.
Eclodem de crisálidas gigantes
Falenas que medonhas bebem luzes,
Os crânios entre adagas, ferros, cruzes
Em tons bem mais profícuos, radiantes
E sobre estas cabeças, vãs e imensas
“Vertem lustrais irradiações intensas”.
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“Vertem lustrais irradiações intensas”
E entranha nos meus olhos tal fascínio
Perdendo das vontades, o domínio
As horas em tempestas, festas, tensas...
Estrídulos distantes, chibatadas
Açoites entre carnes laceradas,
Dos restos do que fui sequer pegadas,
Jamais imaginara as alvoradas.
Brumosa madrugada em pesadelos,
A turba, imunda súcia, velhos párias
Deitando sob as várias luminárias,
Assim posso melhor, decerto, vê-los
E emaranhando ao longe ledas cruzes
Cenário distorcido em vagas, luzes...
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Cenário distorcido em vagas luzes
Novelos de cadáveres, zumbis,
E incrível que pareça estou feliz,
Bebendo cada fonte em que reluzes
Apátridas bastardos, desdentados
Profanas criaturas fartos risos,
Sensações de infernos, Paraísos,
Demônios com arcanjos misturados.
E o gozo prazeroso da tortura
Esvai em sangue intenso sacrifício,
E como fosse outrora o Santo Ofício,
Percebo que o terror ajuda e cura.
Disformes fantasias em que pensas:
“Cintilações de lâmpadas suspensas”
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“Cintilações de lâmpadas suspensas”
Espalham-se nos antros mais imundos,
E os olhos demoníacos, profundos,
Sanguíneas emoções são recompensas.
Hedônicos fantoches histriônicos
Gerando abortos fetos e embriões,
E nesta orgia, louca, tu te expões,
Em danças, atos bruscos desarmônicos.
Fétida e sulfurosa madrugada,
As ânsias estampadas neste rosto,
Melífero terror amansa o gosto
Da imagem ora pútrida e encarnada
E como fossem pedras, foices, urzes
Arrebatando em mim diversas cruzes.
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Arrebatando em mim diversas cruzes
Esdrúxulos demônios me rondando,
E o mundo num instante desabando
Terrível profusão de grises luzes.
Vertiginosa imagem quando eu abro
Os olhos tudo gira, corpo e mente,
Qual fosse um festival torpe e demente
Num ar empesteado em tom macabro
Fulgura entre os espectros áureo brilho
Argênteas, brônzeas flores, rubros olhos,
Pisando sobre brasas, sobre abrolhos
Vagando sem destino, teimo e trilho
Incêndios devorando céus e matas
“E as ametistas e os florões e as pratas.”..
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“E as ametistas e os florões e as pratas”
Entranham ardentias, fogaréus,
Satânicas imagens douram céus,
A lava se derrama em vis cascatas
Vulcânicos eflúvios em clarões
Expondo esta volúpia incontrolável,
Delírio se tornando inevitável
Enquanto tuas carnes; decompões.
E gêiseres explodem vêm à tona,
Histriônicos ritos, corpo nu,
Gargalha-se deveras Belzebu,
Uma esperança tola me abandona
Na vívida impressão, várias imagens
Soturnas e temíveis paisagens.
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Soturnas e temíveis paisagens
Tornando este cenário deslumbrante
Envolto pelos brados lancinantes
Confusas e diversas as mensagens
Entranho cada vez mais pela furna
Figuras demoníacas, dantescas,
Catedrais gigantes, nababescas
Numa ânsia tresloucada em tez noturna
Adentram num instante em seus corcéis
Grotescos cavaleiros esqueléticos,
Com seus esgares lúgubres e herméticos
Girando nestes toscos carrosséis
Montando em seus soberbos animais
“Como os velhos Templários medievais.”
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“Como os velhos Templários medievais.”
Estranhas criaturas uniformes,
Nas fácies caricatas e disformes,
Perfazem seus diversos rituais
Brumosa madrugada em tons sombrios,
Espectros em hedônicas orgias,
E tu entre os cadáveres sorrias
Deitando sem pudor, lúbricos cios
Em holocausto vejo uma criança
As garras dos demônios no seu rosto,
O solo putrefato, decomposto
Uma ninfa desnuda ao longe, dança
Voluptuosa luz nas excrescências
Das ânsias cintilantes fluorescências
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Das ânsias cintilantes fluorescências
Eclodem quais falenas constelares,
Misturam aos sanguíneos lupanares
Corpos desnudados, penitências.
Clamor de vozes dúbias e insensatas
Demônios, querubins, anjos mordazes,
E em meio a tal loucura inda trazes
Nas mãos terríveis fogos e chibatas
Explodem vez em quando os artifícios
Em multicores tantas, maviosas,
Azulejando o solo, várias rosas
Dos céus entre os infernos, precipícios
Lembrar que há tempos entre vendavais
“Entrei um dia nessas catedrais”.
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“Entrei um dia nessas catedrais”
Aonde se expressando cadavéricas
Imagens quase lúbricas e histéricas
Toando sons edênicos, venais.
Assisto ao vandalismo que em meus mitos
Transforma com diverso tom, matizes
Sombrias entre as luzes que desdizes,
Sonoras emoções, diversos gritos.
Adagas e chicotes, orações,
Mesquinhas ilusões, medos diversos,
E quando transfiguro para os versos,
Demonstras com sarcasmo outras versões
Descendo entre satânicas cascatas
E impávidas figuras caricatas.
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E impávidas figuras caricatas
Dançando nesta imensa catedral
Gemido sem sentido gutural
Partícipe das loucas serenatas.
Esgueiro-me entre corpos lacerados,
Bebendo desta insânia me transmudo,
E quando me percebo quase mudo
Também entranho em ritos tresloucados.
Medonhos magos, loucos ancestrais,
Alquímicos cadinhos, carpideiras,
Tremulam entre tantos as bandeiras
Momentos de terror são magistrais
Adentro por confusos, ledos sonhos
“E nesses templos claros e risonhos ...”
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“E nesses templos claros e risonhos
Demoníaca figura angelical,
Misturam-se deveras, bem e mal,
Ao mesmo tempo belos e medonhos.
Esqueço-me de tudo que aprendi,
Visão de um Paraíso deturpado
Inferno, limbo, céu quase nublando,
E neste pandemônio estás aqui.
As roupas já puídas pelo tempo,
A carne decomposta, olhos sombrios,
E enfrento meus temores, desafios,
A cada passo, medo ou contratempo
E ris enquanto o senso desacatas
Em meio às gargalhadas e bravatas.
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Em meio às gargalhadas e bravatas
Encontro minha face estropiada,
Refletindo esta espúria madrugada
Marcada por açoites e chibatas.
Satânicas imagens pululando
Açoites entre fúrias e risadas,
As costas já sanguíneas, laceradas,
Abutres me rondando em tosco bando.
Em meio às preces, velas e serpentes,
Vagando sem destino pelas sendas,
Qual fossem multidões de ritos, lendas,
Hedônicas lascivas e dementes
Satã com seu comboio; traz vergastas
“E erguendo os gládios e brandindo as hastas.”
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“E erguendo os gládios e brandindo as hastas”
Em vândalos e párias transformados,
Momentos tão brumosos e nublados
Vagando pelos ares, tu te afastas
E trançam sobre nós alados seres
Diversas garatujas, gargalhares,
Altares entre fogos, lupanares,
Mostrando os seus anseios e poderes.
Bisonhas caricatas, demoníacas,
Deidades desfilando uma nudez
E quando sobre a cena tu me vês
Imagens tão sutis e afrodisíacas
Assim entre terríveis penitências
Convites para os ermos das demências.
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Convites para os ermos das demências
Fatídicos tormentos entranhados,
Revivem mitos mortos, vãos passados,
Esgotam os limites das decências.
Ecléticos fulgores luz fugaz
Caleidoscópios vários em mosaico,
Hermética volúpia em ar arcaico
E nisto tu te ris, te satisfaz
Energúmenos seres, débeis faces
Escravizando cortes em taperas,
Aonde imaginasse primaveras
Com nuvens invernais, tu logo embaces
Quebrando imagens toscas com vergastas
“No desespero dos iconoclastas.”
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“No desespero dos iconoclastas”
Cultuam-se imagéticas figuras,
Em meio às claras luzes, vãs e escuras
Satânicos arcanjos, cruas pastas.
Decomposição mostra destroços
Carcaças eclodindo das masmorras
Por mais ainda tentes e socorras
Só restam dos demônios, frios ossos.
Cadáver insepulto ri-se irônico
E cadafalsos vejo entre estes tronos,
Representando assim os abandonos
Num ato genial, porquanto hedônico
Danças sensuais por instantes
Afetam meu olhar e inebriantes.
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Afetam meu olhar e inebriantes
Momentos entre fúrias e prazeres,
Diversas profusões de vagos seres,
Enquanto em tal cenário te agigantes.
Mesquinhas e rasteiras serpes vêm
E lambem minhas pernas, mordiscando,
Aos poucos cada parte devorando
Depois de certo tempo, mais alguém
Explode em gargalhadas, dança nua
Orgásticos demônios, anjos nus
E em meio ao festival, vejo urubus
Vagando sobre nós, tampando a lua
Reconhecendo em ares tão medonhos
“Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!”
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“Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos”
Qual fosse algum espelho que mostrasse
A verdadeira e imunda, turva face
Num misto de terrores enfadonhos
Astutos querubins, seres satânicos
Vestindo uma alva e rota maravilha
Enquanto ao longe imagem tosca brilha
Disseminando risos entre pânicos
E neste vandalismo entre promessas
Divinas emoções num temor farto,
Falenas adentrando então meu quarto
Nos sonhos, pesadelos recomeças
Estrelas invadindo deslumbrantes
Fulguram quais bisonhos diamantes.
MARCOS LOURES