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De Angola com amor...

 

O Serafim é um rapaz negro, alto, lábios grossos, cabelo rapado, corpo sarado como é apanágio da raça orgulhosa a que pertence, trabalha como barman num bar da Ilha de Luanda, é pobre como são todos os barmans em Angola, é pobre como é 90% da população angolana, é pobre como é toda a classe operária de Angola, é pobre como é toda a gente que não recebe favores do estado em negócios obscuros, é pobre como é toda a gente que não tem conexões nas elites militares e politicas, é pobre quanto o se pode ser num país onde não se distinguem as realidades politicas e militares. É pobre porque tal como os restantes 90% não pertence a essas elites e como não há classe média, ao Serafim só lhe resta ser pobre.
E eu? Eu sou pobre também porque não consigo distinguir a minha riqueza moral e educacional da miséria em que o Serafim vive, e como gosto de beber uns copos ao balcão e o Serafim gosta de conversar eu fico ali ébrio e etilizado a ouvi-lo com os primeiros raios de sol a despontar por detrás da cidade suja dando cor ao mar mas não ao Serafim que fala das dificuldades que passa para estudar, de como teve que cancelar a sua matricula na universidade porque o dinheiro que ganha nem para a propina dá e depois ainda tem a mãe e os irmãos cuja responsabilidade assumiu após a morte do pai às portas de uma clínica propriedade da filha do presidente, onde para se ser consultado na urgência é preciso uma caução de uns milhares de dólares que o Serafim não tinha. Nesse entretém o Serafim conta-me que as multidões que dormem às portas dos hospitais não são doentes como eu pensava, são familiares de doentes que estão ali para quando é preciso pagar uma seringa, uma gaze um comprimido eles poderem acudir não se dando conta que assim só estão a prolongar o sofrimento dos entes, porque normalmente acaba por faltar algo o qual eles não têm como pagar. Falou-me da brutalidade policial, onde se mata por muito pouco e com toda a impunidade, onde as torturas atingem extremos e nada é investigado. Fala-me de um país à deriva numa enxurrada de dólares que saem e não voltam. País que se quer afirmar como uma potência africana mas que se afunda em manigâncias e pouca lisura. Um país onde a classe política não tem vergonha de ter contas offshore para onde voaram as divisas que tanta falta fazem ao povo desesperado, perdido nos trânsitos fumegantes de carros topo de gama na tentativa de vender uma água ou um telemóvel “made in china”.
Acendo mais um cigarro e encomendo mais um copo, vou brindar à madrugada que clareia, de consciência pesada deixo uma gorjeta generosa, mas não salvo a vida do Serafim nem nenhuma outra, é a lágrima de crocodilo que me cai até assentar a cabeça na almofada e fazer por esquecer que é domingo mas toda uma cidade acorda com os mesmos instintos de um dia de trabalho, sobreviver.
 
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jaber
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/03/2010 17:00  Atualizado: 14/03/2010 17:00
 Re: De Angola com amor...
Literariamente, esta crónica, encantou-me.
Mas estou em crer que o propósito maior é denunciar, rasgar consciências e aí, creio que o objectivo é plenamente alcançado.
Os intelectuais de uma forma geral e os poetas em particular possuem um responsabilidade maior na denuncia destas situações contarditórias que são bem o sinal de que esta Civilização se está a condenar.
Como é possível, em Angola? na Angola que tanto amei! Fico a pensar para com os meus botões.
Aplaudo o texto.

abraço


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/03/2010 18:42  Atualizado: 14/03/2010 18:42
 Re: De Angola com amor...
Bom...digo o mesmo do teu amigo...
Tua crônica encantou-me!
Temos visto isto acontecer constantemente sem que nada seja feito para amenizar estes lamentável sofrimentos...

Parabéns!
Aplaudo-te!

Sulum

Enviado por Tópico
Betha Mendonça
Publicado: 14/03/2010 21:33  Atualizado: 14/03/2010 21:33
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 Re: De Angola com amor...
Querido inimigo,
Bem sabes que ando com a sensibilidade á flor da pele nos últimos tempos e literalmente chorei com teu texto.Não há novidade na tua narrativa, mas a realidade a certos momentos dói mais que em outros.E doeu-me muito!
Bjins, Betha.

Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 14/03/2010 23:21  Atualizado: 14/03/2010 23:21
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 Re: De Angola com amor...para jaber
e é assim para grande parte da população mundial.manipulam uns tantos,calam-se quase todos os outros.vive-se adormecendo a consciência por entre todo este escandaloso mundo,para não nos incomodarmos muito.enquanto isso,lutam pela sobrevivência milhões de pessoas.sim...é triste.triste de constatar.soubeste escrevê-lo com a sensibilidade e inteligência que te caracteriza.talvez ajude a despertar consciências,quem sabe?...não é com caridade que vamos lá.é com mudança de mentalidades,de valores.e queres coisa mais difícil que isto?

abraço

alex

Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 15/03/2010 00:11  Atualizado: 15/03/2010 00:11
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 Re: De Angola com amor...
Caro amigo
Cá longe andamos por vezes iludidos, enganados por uma meia informação. Pelo seu relato chocante constata-se que as palavras de «flagrante progresso desse país» estão a anos luz da realidade. Esse um país potencialmente rico. Que dizer dos que o não são? A natureza desta crónica não exige de facto preocupações literárias. Ela é rica demais no seu objectivo, que é o conhecimento da verdade. É hora desta geração – o mundo ocidental ( rico ou nas imediações) tomar providências demasiado sérias. E não é com armas, mas com solidariedade autêntica e com energia capaz de por cobro a desmandos e aproveitamentos que não tem limites nem perdão. Quem escreve – seja na prosa ou na poética – tem a responsabilidade de trazer à liça este tipo de informação.
Felicito-o pela coragem com que o fez. Acredito que neste nosso tempo está a acontecer uma curva na história de que parece poucos se darem conta e se não é a nossa geração que a conduz e leva a bom porto, será a dos nossos filhos – igualmente preocupante para nós.
Um grande abraço e boa estadia
Antonius

Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 16/03/2010 11:23  Atualizado: 16/03/2010 11:23
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 Re: De Angola com amor...
Um relato tocante e... revoltante!
E o desgraçado do pobre é quem sofre sempre, sempre!