, todos os dias praticamente durante aqueles talvez dois anos ou um ou outro ou os dois faziam o breve percurso que separava seus lares. Renato vivia com os pais e um irmão mais velho num grande condomínio de prédio que não eram caríssimos mas também não eram tão pouco espaçosos, Lauro vivia com os avós, a mãe e um irmão mais novo numa casa também nem tão grande nem tão pequena. Tinha uma pequena piscina ao jardim mas raramente mergulhava-se nela pois que ficava principalmente na sombra dos sóis, estando então quase sempre gelada demais.
Falavam-se por telefone por mensagem instantânea e davam sempre num rolê parcialmente aleatório que revezava por muitas pequenas atividades, que se diria entre aspas, pequenas sacadas pelas ruas do mundo e suas praças pacíficas. Em certo ponto pegaram gosto por detonar os baseados sentados em cima duma árvore especial, um grande galho uns quatro metros acima do chão como banco da praceta suspenso no abismo. O assento sibilava como lâmina esguia aos ventos e eles sacudiam sincrônicos absortos, totalmente colados ao equilíbrio da valsa, da jangada original.
Depois de algum tempo Lauro começou a se despreocupar perigosamente das palas que vinha dando em casa. Aquela cara surrada e aquele cheiro eram inconfundíveis e ele não soube ou mais não quis lutar arrastadamente por sustentar a hipocrisia da negação. Bem natural que isto não fosse bem recebido afinal a separação de seus pais em tenra idade bem tinha sido por motivos paralelos no campo dos entorpecentes e narcóticos, culpa do pai sempre disseram, como se era de esperar. Como Lauro era ao mesmo tempo muito dócil e psicologicamente bem resolvido, os conflitos não se extremavam com reincidência, as coisas foram atropeladamente acontecendo e ele enfim oficialmente legalizara seu quarto, mais especificamente o banheiro. Que lacrava com toalhas e camisetas sujas aos batentes e enchia de esbórnia juvenil.
O que por fim corroeu aos poucos a paciência dos avós foi a combinação desta toda atitude de Lauro e do fato singular de que ele tocava bateria. Tocava já há alguns anos quando toda a onda de paz violeta se apoderou dele. Então os estudos foram tomando formas muito incongruentes em aparência, a dinâmica do treino incansável num quarto sem isolação acústica massacrava também aos vizinhos, era só reprimindo mesmo pra caminhar. Ele foi alimentando um desejo de autonomia, de espaço próprio, era a grande revolta dos intestinos sadios.
Renato às vezes roncava no meio da tarde e era acordado um pouco irritadiço pelos telefones inevitáveis de Lauro. Ainda mal acordava e concordava, sim pode aparecer aqui, vamos dar uma volta por aí. Em algumas situações acabavam aprontando qualquer coisa simplório que custava alguns reais, míseros em geral. Como Renato sempre tivera uma pequena mesada, ao contrário de Lauro, costumava pingar os is pro irmão caçula mas não anotarem pequeno gasto por pequeno gasto um papelzinho, pra um dia certo e indeterminável do futuro, aquilo ser quitado sem paranóias, lealmente.
Um belo e inesperado dia, ah belíssimo inesperado! Num belo dia que começou numa madrugada sonífera de sábado qualquer, foram parar na primeira festa de grande porte de suas vidinhas até então praticamente patéticas. Este dia eles tomaram ácido pra valer pela primeira vez. Um alice bem bonitinho de face dupla, pra cada. É, veja bem. E fumaram também pela primeira vez skank branco, com o Fábio, amigo do Renato, que estudava cinema e era um gay muito bem resolvido e divertido. Naquele dia aconteceu o impossível, o mais fenomenal, e também o mais banal, por certos ângulos mais tensos e pesados. Eles ficaram realmente muito loucos. De ácido e erva ultrapotente. E trance, puxa, como dançaram. Resolveram toda tremedeira pulando desalinhadamente muito mais alto que pensavam pular. Lauro em certa altura percebeu-se como que acordando de um sonho lúcido, estava debaixo da torrente de água do caminhão pipa e fazia xixi nas próprias calças. Assustou-se num primeiro instante mas relaxou por perceber que estava moralmente ileso, protegido da humilhação de se mijar no seco.
Eles se cruzavam só de vez em quando na pista, passaram quase o dia todo rodando meio perdidos meio ascencionados, naquele frenesi progressivo estonteante. Talvez Renato já fosse mais forte que esperava e conseguiu superar com relativa rapidez a mais aguda alucinação, mas Lauro em certa altura se descompassou. Talvez ele percebeu ou intuiu alguma coisa tão importante e essencial e ao mesmo tão aparentemente inaudita, que não pôde evitar uma espécie de suicídio da personalidade reinante do eu. E depois mais quarenta e duas mortes idênticas até aprender que tudo aquilo era real. Então uma borboleta estancou em seu caminho e soprou-lhe o destino dos mestres cósmicos. Testou a sabedoria aprendida ali mesmo e voou com asas mundanas numa proeza mental absurda. Dominara por instantes a gravidade, os eixos, os pesos, e torcera e retorcera às distorções dos estímulos que preenchiam seu organismo. Iniciara-se na arte da compreensão absoluta relativa cabível, fundira-se ao centro sem centro de tudo e principiou o que se poderia chamar de seu verdadeiro caminho espiritual. Um predestinado aos abismos.
Renato depois dava pulos que pareciam de um sapo de um metro e meio. Desafiavam as leis da física, da parafísica se é que ela já foi elaborada. Foi daí pra frente que os rabiscos de Lauro durante as aulas e além começaram a ficar realmente interessantes. Enchia sua literatura de gírias da virada do milênio e queria acreditar que fazia algo de inédito nesse âmbito. Ou talvez houvesse uma incrível conspiração galáctica por detrás das mensagens que ele transcrevia e aquilo tudo era fantástico demais pra se poder corroborar. A torto e a direito ele encenava novas ferramentas psíquicas e queria transformar toda melancolia do mundo em ardor sinestésico autoelucidante.
O namoro que Lauro cultivava também se despedaçou pouco a pouco sob os efeitos controversos das aventuras psicotrópicas. Ela não poderia acompanhá-lo e também mais que isso, ele jamais se perdoaria se ela se perdesse àquela altura. E se perder era o que ia acontecer com ela se seguisse aquela senda. Pranto, discórdia, até que enfim a separação fez dele um poeta sombrio destituído de sua musa. Mas ele trabalhava algo profundo em suas cadernetas e blocos de notas ridículos, o tempo macio fez questão de agraciá-lo com vergastadas mil do destino andarilho. Não tardou as musas voltaram a guerrear em sua alma pela supremacia e o brilho do sorriso de seu olhar faiscaria outra vez. Dela Lauro nunca se esqueceria, era certo, mas também apesar de pérfido era perfeito ele ter de continuar sua vida, andar com a fila.
A amizade se estendia, e nem o namoro de Renato e Aline pareceu abalar demais a estrutura daquela rotina delgada e maliciosa. Ela também amava jazz e sabia mais de música brasileira que eles dois juntos, então era mesmo só alegria.
Claro que depois de meses e meses, as pequenas dívidas somavam pequenas centenas de reais que algumas vezes depois de insistência e um toque de amargura eram resolvidas. Claro que às vezes digladiavam intelectualmente em torno de coisas bem pouco prováveis e depois com esforço retomavam a fluidez, a concordância. Claro também que a pressão da família de Lauro por vezes gerava situações em que Renato era considerado injustamente da pior espécie e isso criava aflições piores que as de não poder tocar bateria. Mas o mor dos momentos eram bons, eram de esquecimento mágico de todas as burocracias e azucrinações da vida que é só engrenagem da grande máquina.
Os sonhos se complicavam pouco a pouco. Lauro tocava pouco agora mas conheceu um pianista quase cego que o ensinou a brincar com montagens complexas em ambientes da música eletrônica, deu uma nova razão com a qual o jovem brincar. Enfurnados no estúdio caseiro de Thomas, no andar superior da casa em que vivia com sua mãe, sonharam a fusão contemporânea ainda inconcebida, o novo timbre da nova era, queriam uma música pra todos os climas e todos os propósitos. E isto afugentava a família de Lauro mais e mais, quanto mais ele se entregava ao isolamento da criação, mais era repreendido como inútil e vagabundo e mais se afastava dos contatos em casa.
A nova amizade começava a alternar compromissos descompromissados entre Renato e Thomas, sem ciúmes nem maledicências. Tudo corria natural pro garoto já quase um varão, Lauro dedicado superando as dores que se infligia dependurado na barra de aço que varava o topo do batente da porta do banheiro. Com palmas pra frente, primeiro apenas segurava firme e pensava em quanto tempo aguentaria aquela condição se soltar da barra significasse cair de um precipício sem fim. Depois aprendeu a trazer os joelhos junto ao peito e revirar-se para trás, ficando suspenso pelas omoplatas com os braços invertidos. E girava de volta à posição original. Um dia percebeu que podia simplesmente esticar as pernas pro alto em meio caminho do movimento total e tocar o teto com as bolas dos pés, ficando literalmente em pé em cima do próprio queixo. Era de embasbacar. E tornava-o de algum jeito tão duro e maleável quanto o mesmo metal que o sustentava. Duro e cheiroso como a madeira de lei da porta e seu esquadro fiel.
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