Crónicas : 

LEMBRANDO MIGUEL TORGA

 
p/rosafogo, com carinho.

Leio o seu comentário, Natália, e fico comovido. Ele me devolve à meninice que perdi um dia, quando, aos dezesseis anos, conheci uma menina na avenida 9 de julho. Era linda. Perguntou-me se eu queria. Mas eu não sabia, juro, o que era este querer. Eu era interno num mosteiro beneditino, fadado a ser padre.
Pois bem, ela me levou a um terreno baldio ao lado e ergueu a saia. E eu nunca mais quis ser padre. Mulher é coisa do bem.
Você me fala de Torga com tanto carinho, Natália, que me comove. Meu avô era, como lhe disse na resposta ao seu comentário, um homem rude, que veio de Portugal, país do qual muito me orgulho, e tenho também como minha pátria - lembro-me que num certo abril, mesmo tão longe, eu chorei -, tentar a vida por aqui como tantos. Um dia, em casa dele, li entre os poemas de Miguel Torga, a Balada da Morgue. Eu tinha só doze anos e fiquei sem dormir de medo, tamanha a maneira como ele descrevia um cadáver. Bem mais tarde, vim a saber que Torga era médico e andou pelo Brasil na meninice. Torga era um pseudônimo.
Conheci, já bem adulto, um dono de restaurante, o bom Siqueira, português, meu amigo, que me contou ter servido Torga num café em Coimbra, onde hoje há uma rua com o nome dele - como se nome de rua tivesse alguma importância. Contou-me que Torga era um homem triste. Escrevia em guardanapos de papel. Vez em quando uma mulher vinha encontrá-lo. O dono do café pedia ao meu amigo que não o perturbasse. É só o que sei de Torga, além das consultas de graça que dava aos pobres. E da repressão na ditadura em Portugal, como aqui também tivémos - e foi cruel, com presos, mortos e desaparecidos até hoje.
Mas passei a escrever bem tarde: é fato que escrevi o primeiro poema aos treze anos, quando vi, por acaso, meu avô português errar ao atravessar a rua, perto de onde morávamos, morrer debaixo das rodas de um caminhão. Foi meu primeiro contato com a morte.E daí fiz meu primeiro poema, que minha mãe, morta não faz muito, guardava entre seus papéis. Não me lembro do primeiro verso deste poema, mas foi minha primeira dor. Outras viriam depois.
Até aos vinte anos, nunca quis escrever. Até que, por falta de opção, o jornalismo entrou na minha vida. Queria mesmo era jogar futebol. Mas a poesia foi a única mulher que não resisti.
Conheci poetas, Vinícius foi meu amigo, Drummond me faltou coragem pra falar direto. Tive vergonha: sou muito tímido, embora não pareça. O que eu quero dizer a você, Natália, é que Torga sempre foi e será presente em minha vida. Não tenho a genialidade dele - quem sou eu? -, mas tenho um louco amor pelo socialismo. Como este Miguel, que não era Miguel, mas Adolfo, tinha também.
carinho,

j.


Júlio Saraiva

 
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Julio Saraiva
 
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Enviado por Tópico
eduardas
Publicado: 05/03/2010 18:17  Atualizado: 05/03/2010 18:17
Colaborador
Usuário desde: 19/10/2008
Localidade: Lisboa
Mensagens: 3731
 Re: LEMBRANDO MIGUEL TORGA p/Júlio
Depois de termos falado sobre torga, hoje nos ofereces este belo texto.

deixo-te um pensamento dele:

" A maior desgraça que pode acontecer a um artista é começar pela Literatura, em vez de começar pela vida".

bj
Eduarda


Enviado por Tópico
HorrorisCausa
Publicado: 05/03/2010 18:51  Atualizado: 05/03/2010 18:51
Administrador
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Localidade: Porto
Mensagens: 3764
 Re: LEMBRANDO MIGUEL TORGA
este teu texto e no contexto fez-me lembrar o poema de Miguel Torga "Poema Melancólico a Não Sei que Mulher"

é sempre com muito agrado que te leio seja em que género for.

beijo aos três (Rosa/Júlio/Torga)


Enviado por Tópico
Henricabilio
Publicado: 05/03/2010 19:06  Atualizado: 05/03/2010 19:17
Colaborador
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Localidade: Caldas da Rainha - Portugal
Mensagens: 6963
 Re: LEMBRANDO MIGUEL TORGA
Fiz esta viagem...

Lembrei-me desse Torga, rude e gentil, que fazia a ponte entre a cidade e o campo.

Lembrei-me de seus versos:

"A vida é feita de nadas
de grandes serras paradas
à espera de movimento;
de searas onduladas
pelo vento (..."

Lembrei-me também de um poema que lhe dediquei um dia lá no Recanto e é já o meu segundo mais lido:

"Urge
conhecer Torga
nascido Rocha
e em terra lavrada
- em forma de urze -
transformada (...)"

Parabéns pelo texto!
Um abraçooo!
Abílio


Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 05/03/2010 19:14  Atualizado: 05/03/2010 19:14
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: LEMBRANDO MIGUEL TORGA
Tu, escreves uma texto que nos revela um pouco das tuas memórias
e dedicas a uma amiga por quem tenho um especial carinho e que merece todo o nosso respeito.
Rosafogo
Bem hajas por seres um homem sensível. Bem hajas por acarinhares pessoas como a Rosa que o merecem.
Beijo
Vóny Ferreira


Enviado por Tópico
rosafogo
Publicado: 05/03/2010 19:22  Atualizado: 05/03/2010 19:37
Usuário desde: 28/07/2009
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Mensagens: 10799
 Re: LEMBRANDO MIGUEL TORGA
É assim meu bom amigo, sempre ele foi meu preferido, amava a Natureza, perdia-se pelas serras na solidão, percorria as pequenas aldeias e
vilas e no fundo me acho parecida com ele, gostava
de gente humilde, contava as suas estórias,e a
poesia, bem a poesia já li dezenas de vezes sempre
com o mesmo prazer da primeira vez.
Sabe Poeta o meu avô paterno também foi para o
Brasil era então oficial de sapateiro, mas como os
tempos eram atrasados, nunca mais deu nótícias,
por cá deixou cinco filhos e minha avó que nunca
mais vestiu senão de preto.Há outra coisa com a qual lido muito mal com a morte, também como o
Poeta perdi minha mãe há pouco mais de um ano,
e sei da dor que sente.
O destino cumpre o seu caminho, assim como o Poeta
se livrou eu também queria ter sido outra coisa que não funcionária
pública, mas me fiquei por aí,não consegui libertar-me.
Adorei seu texto e lhe agradeço por ter dado importância ao meu simples comentário, assim lhe
deixo uma poesia do escritor que eu tanto gosto
Miguel Torga:

Meditação

Monte
Uma palavra, sol e a sensação
De que é um largo horizonte
O fosso que nos mede o coração.

Cobrem-se de balidos e ternura
Os tojos onde o corpo se rasgou;
Uma brisa de paz e de frescura
Ondula o que há-de vir e que passou.

Mas um moinho ao longe mói a vida...
Sem se deter, o malmequer da vela
Desfolha sobre a alma ressequida
A poeira do sonho que esfarela.

Espero que goste, um grande abraço e fique bem.
natalia (rosafogo)

Sempre recordamos a nossa primeira vez, como poderíamos esquecer? Esqueci de falar sobre essa parte, que me comoveu acredite.


Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 05/03/2010 20:16  Atualizado: 05/03/2010 20:16
Colaborador
Usuário desde: 19/04/2009
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Mensagens: 4812
 Re: LEMBRANDO MIGUEL TORGA
caro Júlio,

primeiro. declaração de interesses: sou amigo e admirador da Rosa daqui pela sua autenticidade, amizade e pulsão genuína pela poesia. depois conheci a faceta de uma mulher capaz de lutar com armas desiguais contra fantasmas envoltos em capas de livros. com coragem e bravura e sempre armas leais..
depois o Torga - mau feitio, genial, um prémio Nobel por atribuir, e tantos ensinamentos a colher; no conto e no diário então é do melhor da nossa literatura! E não querendo abusar do seu espaço, deixo aqui um poema do seu Cântico do Homem:

SOMOS TODOS POETAS

Porque não queres os versos que te nascem
Como rebentos pelo tronco acima?
Porque não queres a inesperada rima
dos sentimentos?
Olha que a vida tem desses momentos
Que se articulam numa cadência
Tão imprevista,
Que é uma conquista
Da consciência
Não ser um túnel de negação...
Brotam as folhas que são precisas
E outras folhas que o não são."

Desculpe este abuso, mas o coração tem razões...

abraço poeta
arlindo