Poemas : 

Entre mim e eu.

 

Encostado no corrimão
da minha paciência
sustenho o ar num acervo de agonia
no passo que me recuso a dar
ao degrau seguinte,
preso por uma linha imaginária
que se prende entre o ascendente
e o descendente
nunca sei qual o degrau que piso,
não sei se subo,
se desço,
se fico,
se vou…
abro a gaveta da memória,
aquela bafienta
onde arrumo o que não gosto
e num pressuposto absoluto de limpeza
sopro o pó remanescente
que emerge no ar
e aproveito para enfiar na narina,
na tentativa de me etilizar
no estado sereno da insensibilidade necessária
para abordar o que ali arrumei,
de tempos que não quero recordar,
aos quais não quero voltar.
Estufo o peito num abafado de vinha de alhos
e dou o passo na direcção do degrau
que se precipita no abismo
que me atormenta os sonhos de quando em vez,
caio…
caio…
E o fundo nunca aparece…
Sempre a cair,
numa queda sem fim,
acordo nesse terror
de uma queda abrupta no infinito
e alvoraçado como um bote de borracha que se esbate com as marés,
rompo a quilha na aresta de rocha
e vagueio no ar feito balão
que se esvazia e vai batendo pelas esquinas
até cair inerte no chão do meu desolamento.
Nesse acordar
onde não distingo a razão da minha insanidade
as pálpebras recusam-se a abrir,
o corpo não me obedece,
sei que acordei,
mas o meu corpo não sabe,
como companhia tenho o silencio
e a negritude a que o meu corpo me condena
na insanável recusa de olhar.
Já não sou rio que rompe margens,
não sou mar de águas amenas que te vai beijar,
sou assim uma espécie de regato
que se estiola nos rigores do estio
e mirra seco nas brechas das montanhas que me emparedam.
Vejo-me agora de cima com um sorriso cínico,
eu vejo mas o meu corpo não sabe
 
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jaber
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Enviado por Tópico
Betha Mendonça
Publicado: 20/02/2010 21:48  Atualizado: 20/02/2010 21:48
Colaborador
Usuário desde: 30/06/2009
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Mensagens: 6700
 Re: Entre mim e eu.
Essas sensações desencontradas e cheias de significados, lembraram-me as narrativas das minhas memórias.Muito bom!
Bjins, Betha.


Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 20/02/2010 21:50  Atualizado: 20/02/2010 21:50
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: Entre mim e eu. para jaber
um poema de cariz introspectivo onde o sujeito poético lança um olhar especial sobre si próprio e os seus vários "alter-egos".gostei especialmente do final:"Vejo-me agora de cima com um sorriso cínico,
eu vejo mas o meu corpo não sabe".

muito bom,na minha modesta opinião...gostei de te ler,como é habitual.

beijo

alex



Enviado por Tópico
eduardas
Publicado: 20/02/2010 21:52  Atualizado: 20/02/2010 21:52
Colaborador
Usuário desde: 19/10/2008
Localidade: Lisboa
Mensagens: 3731
 Re: Entre mim e eu.p/jaber
e assim se instala a insanidade.

bj
Eduarda


Enviado por Tópico
Bruno Sousa Villar
Publicado: 20/02/2010 22:00  Atualizado: 20/02/2010 22:00
Da casa!
Usuário desde: 09/03/2007
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 Re: Entre mim e eu.
Uma sinfonia que
se abre e fecha
a cada verso.

Gostei
muito.

Tem passagens da mais alta oficina poética.


Enviado por Tópico
Marília_Silveira
Publicado: 20/02/2010 22:13  Atualizado: 20/02/2010 22:13
Participativo
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Mensagens: 19
 Re: Entre mim e eu.
Muito rico de emoções. Gosto muito desta ideia de dualidade, mas ao mesmo tempo da consciência plena da sua existência e importância. Bela e sublime esta forma de falar dos afectos que nos habitam. Estão presentes em todos nós afinal.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 20/02/2010 22:20  Atualizado: 20/02/2010 22:20
 Re: Entre mim e eu.
Limito-me a dizer que gostei muito de ler, existiria muito para dizer... Não encontro as palavras, fiquei sem fôlego!:)

Abraço,
Vitória.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 21/02/2010 12:01  Atualizado: 21/02/2010 12:03
 Re: Entre mim e eu. p/ Jaber
Esse excelente exercício poético e introspectivo, fala do exato lugar desse "eu". Freud considera-nos sujeitos do inconsciente. "Entre mim e eu" acessas um estágio alterado de consciência (sonho?...) onde só então é possível penetrar, não sem sofrimento, no universo de si mesmo. A agonia, o corte na respiração que isso trás,memórias, quedas sem fim... Sem esses "mergulhos" ocasionais, impossível seguir construindo possibilidades. Então parece um paradoxo, e é... Passado, reminiscências, é tudo o que nos devolve ao momento presente. E ao contrário do que muitos pensam, é só isso que separa a sanidade da loucura.
E viver não dói mesmo? dói! Portanto, ler esse texto rigorosamente lúcido, além de poético,é se apoderar da experiência de viver que nos é comum, ser de falta, da imcompletude, da busca incessante, mas especialmente da beleza extraordinária que nos habita a todos.
Perdoe-me se comentei muito "psicanaliticamente".
É esse ser, entre "eu e mim"... rsrsrs
Parabéns por isso.
Beijo,
Sandra Fonseca.