Descalcei-me dos medos e caminhei no escuro da noite. Gelada noite, vento a entrar-me por entre os buracos de um xaile de renda.
Tremia e a minha pele arrepiava-se. Passei as mãos pelo corpo, com força, para acalmar a sementeira de pele de galinha que se espalhava.
Por um instante parei e reflecti: Que faço aqui? Porquê que teimo e continuo enfrentando temporais gélidos se eu não tenho agasalho? Porquê que simulo descalçar-me do medo se trago o medo agarrado a botas de cano alto?
O vento sibilava cada vez mais, cada vez mais frio e o céu cada vez mais escuro. Nem uma única estrela, nada reluzia que não fosse o meu cigarro que me fez companhia em grandes bufaradas de quem travou o fumo, até o fundo dos infernos de si, pulmões negros de alcatrão, olhos raiados de sangue da tosse que asfixia.
Olhei para o cigarro que ardia quando lhe batia o vento à medida que ia gritando:
Para quê que acendi esta merda que só me faz merda cá dentro!? Quero lá saber, que se lixe o dentro e o fora, que se lixe a noite escura que me assusta, o frio que me mata. Tenho um cigarro por companhia, por agasalho, por lamparina.
Meti a mão num bolso dos buracos do xaile, de onde tirei outro cigarro. Acendi-o, aspirei-o com força para dele tirar sustento, mastiguei-lhe o fumo, como se fosse um pão que me matasse a fome.
Continuei reclamando:
Quero lá saber do cigarro, da porra do pão, do frio, do gelo das minhas entranhas, das minhas rotações descompassadas, das putas das pernas presas... Tenho um medo do caraças, do escuro, das sombras, aqui neste ermo escuro onde nem eu própria faço sombra…
Aspirei uma vez mais o cigarro para ver os dedos trémulos.
Foi por causa do cigarro aceso que me descobriste na noite.
...
Pareceu-me ouvir vozes lá fora, de alguém que falava agitada.
Abri a porta, mandei-a entrar e dei-lhe guarida. Embrulhei-a numa manta de lã para que se descongelasse ao pé da fogueira enquanto me foi contando a sua história, aquela história.
Aos poucos, ganhou brilho e força e depois dormitou.
A seguir, peguei nela, lancei-a no escuro e, com um sopro, ajudei-a a elevar-se no céu.
Quando olhei para cima, lá estava ela, cheia, resplandecente de luz e, aos poucos, a noite deixou de ser noite escura.
Fui-me deitar.
Indiscreta olhou-me através da cortina de seda, acenou-me e agradeceu com um sorriso.
Quisera eu ser poeta
Quisera eu ser pintor
Escrever telas e pintar poemas
Escrever, pintar, pintar,escrever
A humanidade com muita cor