Poemas : 

QUASE UMA ODE

 
para ana cristina cesar, hilda hilst e orides fontela, pela alta poesia que fizeram - nem sempre entendida. a torquato neto também poeta brilhante e que foi tão cedo.



tenho sonhos tristes
e me pego sempre no purgatório
(alma penada saio fugindo de mim mesmo)
se me esbarro na rua peço licença
tenho um cigarro entre os dedos
e um olhar de culpa
o hálito de álcool quase doentio
devo morrer de cirrose hepática amanhã - diz o médico que é meu amigo
meus óculos estão fartos dos meus olhos
e na janela nenhum luar mais enxergo
no entanto resisto e escrevo
só sei fazer isto: escrever
como se escrevendo às três da madrugada
eu pudesse mudar o mundo
tenho um litro de uísque do lado
dois maços de cigarro que me vão matar mais depressa
e um milhão de adultérios que me levarão
à casa da amada que não existe
se pelo menos eu conseguisse cortar os pulsos
mas me falta coragem nesta hora
quando a rua é deserta
queria sentir pena de mim
mas aos 53 anos isto é quase impossível
dou um trago na bebida
acendo um cigarro
e tento escrever um poema
quem sabe o cansaço me vença e eu durma mais tarde

_____________________

júlio

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Júlio Saraiva

 
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Julio Saraiva
 
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Enviado por Tópico
Massari
Publicado: 12/02/2010 09:32  Atualizado: 12/02/2010 09:32
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 Re: QUASE UMA ODE
Muito bom, caro amigo.

Grifo: um milhão de adultérios que me levarão à casa da amada que não existe.

Abraços


Enviado por Tópico
eduardas
Publicado: 12/02/2010 12:20  Atualizado: 12/02/2010 12:20
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 Re: QUASE UMA ODE
A tua verdade aqui neste poema, que doeu mas entendi.Mas sempre o talvez...do poeta!

bj
Eduarda




Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 12/02/2010 15:32  Atualizado: 12/02/2010 15:32
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 Re: QUASE UMA ODE para julio
quase nenhuma arte é bem entendida na época.os seus autores muito menos.é preciso muitas vezes que morram para que sejam "finalmente" aceites.muitos deles não aguentam a pressão desse "desajuste".derivado disto e também provavelmente da intensidade com que sentem as coisas muitos enlouquecem, se suicidam ou consomem substâncias que os alienam da realidade.
acho que vale a pena pensar nisto.e também no "fenómeno" daqueles que na época os contestam e marginalizam e depois "adoram".

gosto de ti julio.e da ttua poesia.e aceito-te tal qual tu és.

abraço

alex


Enviado por Tópico
Branca
Publicado: 12/02/2010 15:54  Atualizado: 12/02/2010 15:54
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 Re: QUASE UMA ODE
Julio, temos que tentar sempre. Já nos eternizamos quando deixamos nossos poemas. Talvez lá no futuro alguem leia e tenha as emoções afloradas. Mas ninguém é de ferro, só não podemos deixar-nos sucumbir. A crueldade do tempo não dá chances, corremos para o túmulo mais cedo ou mais tarde. Mas entre o nascimento e morte, devemos fazer valer a pena.
um abraço...
Branca

Enviado por Tópico
miriade
Publicado: 12/02/2010 17:06  Atualizado: 12/02/2010 17:07
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 Re: QUASE UMA ODE
Se ode não for, é uma forte e bela formulação de experiencia vivida,o poeta não tem intenção de dizer, ele diz,revela o tecido de sua realidade ou o ópio de sua ilusão,e no espanto da poesia ele simplesmente se apresenta.

Beijocarinhoeadmiração, Lu

Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 13/02/2010 00:42  Atualizado: 13/02/2010 00:42
Membro de honra
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 Re: QUASE UMA ODE p/ Júlio Saraiva
Não te venho com grandes sermões, Júlio, porque tu já sabes há muito que gosto do que escreves.
Este poema está muito bonito.
Deixo-te com as palavras de uma poetisa que creio aprecias tanto como eu.
Vale a pena sem dúvida dar-se relevância ao mundo mágico da poesia.
Saravá... Poeta!
Vóny Ferreira

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 13/02/2010 00:51  Atualizado: 13/02/2010 00:51
 Re: QUASE UMA ODE
"como se escrevendo às três da madrugada
eu pudesse mudar o mundo"

ou hora qualquer...

porra meu... quantas coisas mudariamos!

é por isso que eu bebo.

beijo irmão.



Enviado por Tópico
Henricabilio
Publicado: 13/02/2010 11:31  Atualizado: 13/02/2010 11:31
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 Re: QUASE UMA ODE
Eu chamar-lhe-ia "ode desencantada" mas como já tenho uma com esse título, chamo-lhe outra coisa, mas ode também... rss
Sim por que o desencanto está sempre à porta do coração do poeta, muitas vezes já lá dentro bem enraizado e com pouca vontade de sair.
Mas quando o poeta abre o peito e espalha o seu cântico com palavras, abrem-se as janelas do alívio para entrar ar puro.
Se não derramasse emoções vividas nas suas palavras, o poeta não seria mais que um cronista que descreve qual autómato todos os passos do seu quotidiano ensonso.
Sim, que a poesia admite e encoraja todo o tipo de ingredientes.
Parabéns pela sua ode!
Feliz Carnaval!
Um abraçooo do Abílio.