Crónicas : 

De mim e de outras mulheres VI

 
Este podem ler, é pequenino!

Apareceu do nada no hall do andar, carregado de sacos plásticos, barba por fazer hirsuta e esbranquiçada, olhos claros com um olhar negro cor da pele, as calças eram farrapos que mal lhe tapavam o esqueleto e as partes pudibundas, um casaco amarrotado cuja cor já não se distinguia, calçado trazia a planta do pé rugosa e poeirenta. Os outros miúdos arrancaram a correr e a gritar abandonando o jogo do botão que originava acaloradas discussões quando pedia meças a palmo, eu continuei ali de joelhos boquiaberto, não de terror como os outros mas sim de surpresa pelo homem da triste figura que se me deparava.
Caminhou diante de mim, como se me perpassasse sem olhar para mim, imune e ignorando o estupor que ostentava. Ao longo da varanda corrida que servia os apartamentos e cujas portas estavam abertas a triste figura a todas bateu sem alma e sem esperança, como um autómato, arrastando os pés num passo vagaroso e alquebrado.
Pedia esmola ou algo para comer ou até mesmo algo velho que pudesse depois vender ou trocar, eu seguia-o silencioso um ou dois passos atrás. Uma vizinha deu-lhe um espelho e despachou-o:
- Agora põe-te a andar daqui que não se suporta o cheiro – disse em voz severa e ríspida. Era a ultima casa, ele deu meia volta e recomeçou aquele compasso olhando e admirando o espelho, de repente este caiu no chão forrado de azulejos estilhaçando-se em vários pedaços, o homem olhou os pedaços incrédulo ajoelhou-se e começou a recolher os pedaços em movimentos maquinais, eu ajoelhei-me também incapaz de ignorar o sofrimento que se sentia no rosto hirto e ossudo.
O homem pegou num dos pedaços e reflectiu-se nele o rosto, ele olhou-se no fragmento do espelho, as lágrimas explodiram-lhe nas íris, lamentando não se sabe o quê, se o espelho partido, se o fragmento de vida que lhe viu estampado.
 
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jaber
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Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 10/02/2010 21:44  Atualizado: 10/02/2010 21:44
Colaborador
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Mensagens: 7238
 Re: De mim e de outras mulheres VI
1.gosto de te ler.a sério que gosto.e se o digo é porque efectivamente leio e gosto.sabes disso não sabes?
2.comoveu-me a curiosidade/perplexidade do menino,quase uma intuição de que algo significativo ía reter dali.a loucura espelhada naquele fragmento de vida.as lágrimas que suponho,fossem choradas,sobretudo pelo que a vida o entristeceu.pelo que o desiludiu.pela nítida constatação de que nunca ninguém o viu...mas estava ali um menino.
3.não agradeças o comentário.muito menos "retribuas".já o fazes aliás.sabes como tudo isso é ridículo.

comunicamos quando queremos e quando pudemos.certo?estando as devidas condições reunidas,sempre às ordens.

abraço

alex


Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 11/02/2010 00:34  Atualizado: 11/02/2010 00:34
Colaborador
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 Re: De mim e de outras mulheres VI
Este andrajoso homem traz-me pelo tempo um cenário que me era comum na infância. Até os cães se incomodavam com este tipo de criatura. Mas carregado de significado a expressão do homem ao reconhecer-se no pedaço do espelho. De certeza que entendeu a verdade que morava em si. Reflexão oportuna.
Um abraço
Antonius

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 11/02/2010 00:49  Atualizado: 11/02/2010 00:49
 Re: De mim e de outras mulheres VI
Mesmo grande, eu leio sempre!!
Na vila onde eu cresci tinha uma personagem muito identica á do homem que aqui descreves, só que era uma mulher. Lembro de vir da escola e de a ver ás voltas aos caixotes do lixo... enfim,era triste e foi muito triste o fim daquela senhora que acabou por morrer num incendio.

Mais uma vez gostei de te ler,

um beijo


ps: beijinho da "sobrinha" que tá enorme!!

Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 11/02/2010 03:46  Atualizado: 11/02/2010 03:46
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Localidade: Queluz
Mensagens: 3731
 Re: De mim e de outras mulheres VI
Talvez esse pobre homem tenha visto nesse pedaço de vidro pintado de estanho ou prata, apenas o reflexo de tudo aquilo que sonhou um dia mas que afinal não era... um caco aguçado que se espetou no fundo da alma!

Bem pequenito como convém, mas recheado de conteúdo daquele que faz cócegas no pensamento e obriga a reflectir nos valores que se ganham e perdem nesta odisseia de se ser humano.

Beijo