Parte I - As crianças e seus sonhos
O que morreu em mim?
Será a paixão solitária,
Será a beleza falsária,
Será a terra imaginária,
[das coisas que pra viver escondi?]
O que morreu em meu povo?
Será a paixão juvenil, canto de ária,
Será a sensação libertária,
Será a ilusão passageira,
[do sentimento que perseguia nas passeatas?]
O que morreu no meu mundo?
Será a palavra que transforma,
Será a lava que solidifica,
Será a terra que alimenta (mata a fome),
[da Verdade do Cristo, um sonhador, do amor?]
O que morreu na gente, não sei direito
Todavia, na criança ainda não pereceu
O sorriso, a inocência, o amor pueril
Que um dia, em cada um de nós, esteve presente.
Porque morre a criança em botão?
Se pensamos levar à vida adulta ao desfecho final
Quando ela já se encontra abatida, desnutrida,
Antes mesmo de nascer, com indefeso pássaro caçado.
[Ah, tanta hipocrisia "as crianças são o futuro", se lhes roubamos este direito?]
II - Violência social: a criança, sua maior vítima
Porque entregar uma arma
[inda que seja de brinquedo]
a este inofensivo ser em formação
[como se fora um pequeno soldado]
"destruir a nossa própria semente,
o preço do pão alimento,
na bala de fogo,
que corre silente,
a exterminar: campos, vales,
templos, lares e mentes..."
Morre a criança, a flor em broto
Murchou na seca do ódio
Que a ganância traz
e a ambição faz
Algumas morrem no ventre
Outras no berço de fome
Como anjos docemente a sonhar
Com lagos, prados, fontes, a brincar
Há aquelas que morrem no chão,
Agredidas, violentadas, fuziladas
e apenas queriam amor, lar e pão
Pela omissão do estado e das famílias
E, porque não admitir repulsa social
Do cidadão comum ou policial
exterminadores da infância
armas em punho somadas à intolerância
Parte III - Sobreviver em meio ao caos, abandono.
O que as crianças é possível sonhar?
[E, infelizmente lhes é negado?]
É com o direito ao ensino, como aprendizado
É com o direito a um lar, sem ser escravizada
É com o direito a cidadania, sem ser subjugada
O que é lastimável é ver pelas ruas,
Irresponsáveis reprodutores sugando suas crias
Pelos sinais, vivendo da escravitude
E "educando" na vicissitude
[Negando a escola a seus filhos, um absurdo, e as autoridades assistem passivamente ao espetáculo diário nos sinais de trânsito.]
À noite, sujas, famintas e desamparadas
se enrolam em cobertores de jornal ou papelão,
embaixo das marquises e passarelas
ou cansadas subindo as ladeiras do morro
O que lhes foi negado?
Os sonhos, o crescimento, as oportunidades,
O que lhes foi legado?
Os três "D": doenças, desnutrição, drogas
E assim, seguem ao futuro indiferentes
E ao olhar dos transeuntes
Adianta chorar na nau dos desamparados?
Que força buscar nos corpos enregelados?
O que nos diferencia do Haiti, África ou Índia?
Se padecer da fome é também um "mal" universal
Se de abalos do corpo, trêmulos na sua globalidade
Insistem em sobreviver e resistir em tenra idade?
[vivem como um amontoado de "lixo" urbano, vivo, desprezado, ignorado.]
E mal saem de um buraco, entram em outro
Fundo como todas as suas desgraças, suspiram
Num último adeus, só resta um consolo
[alívio para muitos, infelizmente].
Alimentar a vasta gama de germes que abrigam.
[na solidária manifestação do último sopro].
AjAraújo, o poeta humanista, reflete sobre o maior dos dramas sociais do planeta: o abandono e extermínio de nossas crianças, especialmente aquelas nascidas na miséria, esquecidas pelas ruas, escrito em novembro de 1975, revisitado em fevereiro de 2010.