Assim se fazem os ateus
Foi num dia de ora sol ora chuva. Qualquer pedaço do céu daria um retrato. Mas todas as imagens de repente viram bruscas e sabe-se lá porquê.
O Jorge da Conceição foi levar o rebanho ao monte, subiu colinas inteiras, tocou com a cara no vento frio, há sítios em que não se espanta a solidão. Muito menos lá em cima. As ovelhinhas em pasto tranquilo, mamando erva da boa, os cavalos lá em baixo em liberdade, uma águia no alto supervisionando o ambiente, uns pequenos caracóis em banhos de sol, um coelho bravo que corre atrás de uma lagartixa que é manca. Enfim, a natureza no seu melhor.
Jorge da Conceição sentado numa pedra fria, de realejo nos beiços tocando uma melodia nem assada nem frita, um som assim-assim.
Eu não falei mas, também havia uns insectos em acasalamento, umas flores espevitadas pela luz do meio-dia, uma cobra que de venenosa só tem o seu silêncio de andar. O ar é calmo e o pensamento também. Juntos fazem a harmonia. Adão e Eva assim se declararam um ao outro, se despiram sem ilusões ou manobras cinematográficas. Tudo é bom quando o nada se apodera. Quem dera, diz o Jorge da Conceição no seu vago infinito de memória quando se lembra da última vez com a Isaurinda. Ele, despenteado com uma árvore em nortada. Ela, a mostrar como está crescida. E juntos percorreram as arábias um do outro, em suores escaldantes, que o põe a pensar no bom que seria se agora fosse outra vez.
O realejo continua, como que chamando o queijo para dentro do pão. Só que aqui a fome é outra. Stop! Eis que alguém surge ao longe. Um ponto a crescer no horizonte, em cada passo e gesto. Uma mulher que irá ter com ele, fazer amor com ele, ouvirá da boca dele todas as histórias.
Afinal Deus existe, desabafa o Jorge da Conceição assim que topa que a mulher tem desejo igual ao dele. Pode até a dúvida ser um castelo que se desmorona, mas ele aqui será rei de uma qualquer aventura. Assim crê. Como acredita que este dia não terá fim nem não. É preciso amar para não perder o ritmo sanguíneo.
A deusa vem lá. Caminha como uma onça no seu recreio.
Exibe a sua naturalidade com uma erva mansa.
A poesia será um bom cobertor. Oxalá! O Jorge da Conceição sacode as calças, ajeita o colarinho, branqueia as palmas das mãos com um pouco de cuspo.
Não me mandem parar este filme agora.
Eu sou narrador mas não tenho nada a ver com isto.
Não fui eu quem colocou a mulher no texto. Foi o Jorge da Conceição que no seu íntimo a desejou. O único sacrifício no amor é não se poder dar três ou quatro seguidas.
(Ninguém chora o seu próprio pulmão)
Eles cada vez mais perto um do outro.
(Porque somos animais tão lentos?).
O céu sente a aproximação daqueles dois corpos e lança uma chuva miudinha para compor o cenário. Visto daqui tudo é bonito.
Ela acena. Ele também.
A mulher tem um ar fresco de quem nunca roubou beijo a um outro homem. As suas pernas são de quem corre atrás de uma fantasia.
Parece coxear um pouquinho, mas deve ser das irregularidades do solo. É alta como a que vira nos sonhos. Jorge da Conceição pára de agradecer a Deus para puxar um cigarro e beber mais um gole do bagaço que o mantém.
As horas deixam de ser horas para serem pássaros estáticos onde os podemos agarrar.
O amor será entretanto. Daqui a dois ou três parágrafos. Tomara que sim! Quando, muito perto de se tocarem, de sentirem o que é quente, de saberem que no final a natureza irá aplaudir, seus lábios mexendo,
como sede que morre,
o aperto dos corpos,
as mãos,
as pernas,
os olhos formando unidade,
a mulher, que vem ligeiramente cansada de subir a alta colina, finalmente chegou perto do Jorge da Conceição, num respiro que deu para provocar nele uma pequena erecção.
Pede-lhe que a siga. E voltam a descer a colina. Agora os dois. Talvez haja por ali uma casinha que melhor nos agasalhe, pensou o Jorge da Conceição. A loucura mantém-se de pé. E o desejo nem se fala. Ela à frente, ele, ligeiramente atrás avaliando as curvas. Mas que curvas! Obrigado Deus! Terá motivos para cantar a beleza em todos os pores-do-sol.
O silêncio diz mais que a verdade, mas nesta hora de anseios não chega. Quando ele ia para falar, com todo o seu sangue desperto, ela interrompeu-o e, em apressada e preocupada voz, falou:
- Rápido, o meu marido caiu do cavalo! Precisamos da sua ajuda!
E Jorge da Conceição, fulo como uma galinha excluída da cobrição do macho, olhou o céu e resmungou por entre os dentes: é por estas e por outras que assim se fazem os ateus!