Poemas : 

A MISSA DE MÊS QUE NÃO FEZ UM MÊS

 
Hoje, fui à missa de mês de minha mãe. Errante na data, não fez ainda um mês que ela morreu. Marquei a data errada. Talvez ela já estivesse morta antes: poeta, sem intimidade com a igreja onde cresci, ainda que não queira tenho premonição.
Fui sentar-me ao fundo da igreja de São Gabriel, no Jardim Paulista, bairro onde cresci, para que não me vissem.As lágrimas que pela primeira vez, desde o dia da morte, me caíram dos olhos. Não ficaria bem chorar tanto tempo depois. Não sei se acreditariam nelas. Também quis fugir dos abraços de pêsames. Não coloquei paletó e nem gravata, porque não combinam comigo. E também ela, a mãe, não gostaria.Sabia o meu jeito.
Ao altar subiram dois sacerdotes, com estolas roxas, sinal de luto, assim manda a igreja. Um deles, decano, já nos seus noventa anos, o Donato, foi meu professor de latim, me deu um beijo na testa, me abraçou forte. Mas se esqueceu que me reprovou duas vezes, talvez porque tivesse a certeza de que eu nunca seria padre - as pernas da secretária do mosteiro - a única mulher que lá entrava, em seus 17 anos -, bem diziam a minha nenhuma vocação para a vida monástica e principalmente o celibato, que nunca aceitei. O outro, Vicente, foi meu colega no seminário.
Não pensei que soubessem falar tão bem de minha mãe. Na hora da homilia deixaram que eu dissesse o meu Prelúdio de Uma Elegia. Cheguei até ao fim sem chorar, porque na hora não podia. Dois secretários de estado estavam lá: minha mãe trabalhou cinquenta e dois no serviço público.Serviu secretários de estado e governadores calhordas - um deles chegou a me prender, pela minha filiação ao Partido Comunista Brasileiro, quando ainda ia na ilegalidade e eu só tinha dezoito anos. Faz um tempão. Minha mãe dizia sim, senhor e pois não, não tenho culpa do meu filho ser assim. E foi me tirar da cadeia, mas eu não me emendei nunca. Voltei a ser preso de novo. Outras vezes ela não conseguiu me tirar, senão à custa de advogados que lhe cobraram o salário inteiro - um, Antônio Claudio Mariz de Oliveira, talvez o maior criminalista do Brasil,este me defendeu de graça e pôs o seu escritório à minha disposição. Prezo por ele e pelo desembargador Valdemar Mariz de Oliveira, já morto, seu pai, que também me defendeu de graça,usando seu nome no tribunal, onde foi desembargador e secretário de estado Eu não teria como pagá-lo. Tirando sua toga, foi como advogado. Defendeu-me de graça, repito - não teria como pagá-lo -, quando injustamente - não sei o que era justo na época - fui incurso na lei de segurança nacional - como se os meus versos oferecessem algum perigo a quem tinha armas engatilhadas -, acusado, por um promotor canalha, que aceitava laudos falsos, de falsos médicos-legistas,como o cafajeste Harry Shibata, que "suicidou" o jornalista Vladimir Herzog, morto a pancadas nos porões da ditadura.Fui acusado de agitação e baderna, quando eu queria um país mais justo. No velório de minha mãe, Antônio Cláudio não largou um minuto de mim.Foi o irmão que eu não tive.
À noite,ontem, sozinho, saí um pouco. Bebi demais, fumei além da conta - eu e os meus vícios. Voltei pra casa, mergulhei na cama vazia. E vi que me faltava um colo. E então chorei um pouco mais, antes de dormir.
Foi a primeira vez que me senti órfão. Da vida. De tudo. De mim, principalmente de mim.

___________________

júlio


Júlio Saraiva

 
Autor
Julio Saraiva
 
Texto
Data
Leituras
1116
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
12 pontos
12
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Alemtagus
Publicado: 01/02/2010 10:02  Atualizado: 01/02/2010 10:02
Membro de honra
Usuário desde: 24/12/2006
Localidade: Montemor-o-Novo
Mensagens: 3408
 Re: A MISSA DE MÊS QUE NÃO FEZ UM MÊS p/ Julio Saraiva
Por vezes só sentimos falta de quem já não temos quando reparamos que aí existiu um amor insubstituível, um carinho inigualável ou uma repreensão... irrepreensível. A isto chamamos de «dor», sentimento de vazio, deserto. Chora sempre que queiras, não guardes essas gotas de sentimento.

O meu abraço, irmão.


Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 01/02/2010 11:09  Atualizado: 01/02/2010 11:09
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: A MISSA DE MÊS QUE NÃO FEZ UM MÊS
Eu, que tão bem (ou mal...) sei da dor de chorar para dentro, passei em silêncio na sua Elegia, deixei-me no fundo da igreja, por não saber palavras e por saber que palavras são a mais, em certos momentos... mas, Júlio, sabe (você sabe, já descobriu...), chega um tempo em que falar, chorar para fora, urge e se torna vital. Fale, relembre, chore. Há um tempo certo para tudo... (menos, talvez, para a nossa mãe morrer...)

Um abraço, só.
Teresa


Enviado por Tópico
Moreno
Publicado: 01/02/2010 11:39  Atualizado: 01/02/2010 11:39
Colaborador
Usuário desde: 09/01/2009
Localidade:
Mensagens: 3482
 Re: A MISSA DE MÊS QUE NÃO FEZ UM MÊS
li e reli e inspirei fundo no fim.

caro julio, envio-lhe um fraterno e sentido abraço.


Enviado por Tópico
HorrorisCausa
Publicado: 01/02/2010 11:44  Atualizado: 01/02/2010 11:44
Administrador
Usuário desde: 15/02/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3764
 Re: A MISSA DE MÊS QUE NÃO FEZ UM MÊS
não morras mãe, não morras!
que enterrada hás.de viver.

mãe não morre!

beijo


Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 01/02/2010 15:42  Atualizado: 01/02/2010 15:42
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: A MISSA DE MÊS QUE NÃO FEZ UM MÊS para julio
sentei-me nessa igreja ao teu lado.vi a hipocrisia e a sinceridade desfilarem à frente dos teus olhos secos,molhados por dentro,pisados.dei-te a mão e tu não viste,porque a solidão é avassaladora e cega quando sofremos e pensamos que mais ninguém vê.tua mãe estava lá e mandou-me um beijo e um recado.era para te dizer que ninguém é orfão enquanto existir o amor e a amizade.e era para pedir que te mostrasse por palavras os olhos de todos os que te sabem ler e sentir.estão aqui alguns...não vês?

um beijo