O edifício era alto, muito alto para a idade que tinha, aquela idade em que tudo e todos nos parecem grandes, lembro-me de olhar para gente cuja altura hoje suplanto e achá-los altos. O edifício era um caso assim, mas só tinha 2 andares, 3 se contarmos o rés do chão mas parecia-me um arranha céus comparado com a pequenez em que me senti ao ver o meu pai e o meu tio desaparecerem por trás da grande porta de carvalho maciço que se fechou num ranger de dobradiças doídas pela ferrugem e pelos anos, dando os ferrolhos de ferro fundido que imediatamente a cerraram o ultimo toque na triste sinfonia do pior ano da minha vida, que adivinhei logo ali.
Além de alto o edifício era enorme com longos corredores forrados em soalho de madeira oca que davam um estranho soar a cada passo, os tectos enormes eram a razão de ser tão alto e só ter 2 andares. Fui conduzido por um padre de batina preta e cara de poucos amigos aos dormitórios para depositar a minha bagagem e fazer a minha cama. Estreei uns lençóis amarelos com umas flores castanhas ainda embalados num saco plástico, estiquei um cobertor e coloquei a colcha da cama que me tinham dado igual a todas as outras, as camas era separadas umas pelas outras pela medida de uma mesa de cabeceira que não ultrapassava os 30-40 cms, a cabeceira da minha cama era delimitada pela cabeceira do colega da cama que se seguia, estava rodeado de camas, nunca tinha visto tantas camas, um mar de camas…E eu tão pequeno ali no meio…
- Já acabaste? – A voz autoritária do padre com andar de ganso retirou-me dos meus pensamentos insignificantes. Respondi-lhe que sim e ele mandou-me apressar para acorrermos à capela que iria começar a eucaristia, que nesse dia seria celebrada pelo Emérito Bispo D. Eurico para dar as boas vindas ao novo ano lectivo. Lá fui atrás do padre até à enorme capela onde estariam umas 400 crianças como eu, uns mais velhos, outros mais novos mas todos dentro da mesma faixa etária. Por trás do altar destaco o enorme crucifixo pendurado do tecto como que vigiando cada um de nós num misto de terror e de respeito. O emérito bispo lá descarregou a ladainha da missa, num ritual em que se lhe notava o enfado tal como em quase todas as missas a que se assiste, o padre parece sempre muito aborrecido por ter de estar ali e não faz a mínima tentativa de o disfarçar.
No fim da missa fomos avisados para não sairmos do nosso lugar, iria ter lugar uma explicação prévia de algumas regras que os novos elementos deviam seguir, sabia eu já na altura que há lei da bofetada e da chibatada, que o meu colega do lado no banco corrido da igreja me foi segredando á medida que a missa ia decorrendo.
O padre Borges, reitor do seminário deu uma breve introdução da vida que nos esperava recheada de regras e leis absurdas e preconceituosas, o termos que andar sempre em fila indiana, não podermos andar de mãos nos bolsos, (parece que tinham medo que tocássemos as partes), não podermos ler livros que não fossem religiosos e mesmo esses só os constantes da biblioteca posta ao nosso dispor, o só podermos tomar banho às quartas e sábados pese embora o facto de sermos obrigados a jogar bola no recreio que se seguiria ao almoço já que éramos proibidos de jogar jogos a dois ou conversar ou outra qualquer actividade lúdica que não fosse o futebol e o volei, ficando eu a pensar onde iam meter 400 crianças a jogar num campo de vólei e 4 campos de futebol.
Depois do vasto rol de regras e quejandos seguia-se a hora de jantar. Fomos mandados já em fila indiana para o refeitório, onde ficamos de pé alinhados em mesas de 6 lugares com tampos de mármore debruado a carvalho e bancos corridos. Só nos foi dada autorização para sentar depois de um pai-nosso rezado a preceito e devido sinal da cruz feito a correr tal a fome. Fome essa que desapareceu à vista das travessas com massa cotovelo envolta numas couves em cujo caldo devem ter cozido uma carne para dar sabor mas encarregarem-se de a retirar previamente. Comemos a frugal refeição atamancada com um pão recesso, só um, porque só tínhamos direito a um pão. No fim do jantar fomos para o enorme salão de estudo onde devíamos dispor o material escolar. Quando ficou tudo arrumado, rezamos o terço, e fomos de novo dispostos em fila indiana para seguirmos para os dormitórios. Duas ou três filas á minha frente um dos garotos foi apanhado pelo Padre António Luís a brincar, prontamente metido na ordem com uma chibatada rápida e vigorosa a varar as orelhas frias que feria o corpo e o orgulho e devia dar alguma satisfação sádica ao padre pela frequência com que a utilizava.
Nos dormitórios tínhamos sido avisados para não tirarmos as roupas sem que as luzes estivessem desligadas, eles tinham medo que nos excitássemos com a visão mútua dos nossos corpos em cuecas.
Já com os pijamas vestidos e de dentes lavados, rezamos as orações da noite ali mesmo de pé junto à cama.
A luz foi apagada, o silêncio atingiu-me como uma bofetada, magoando-me o orgulho como aquela chibatada tinha magoado o colega há pouco. No meio da penumbra ouvia-se o ranger dos beliches dos miúdos que se viravam numa tentativa de conciliar o sono, um ou outro soluço de algum mais mimalho que sentiu falta do beijo reconfortante da mãe, do afago de testa do pai. O fragmento de saudade ganhou corpo em mim, lembrei a canção do Carlos do Carmo, naquela voz aconchegante: “parecem bandos de pardais, á solta, os putos…” Lembrei o pardal que tentei domesticar e que se recusou a comer até cair e o encontrar morto no chão da gaiola, numa ponta de angustia e remorso pensei na razão que me levou a não abrir a porta da gaiola ao pardal, tão bonito! O mais bonito que vi…