Poemas : 

A OUTRA BALADA DA CASA

 
"do que eu me lembro
é do esquecimento da casa
do ressoar dos passos que doem
com o silêncio
quando os dias vão
na sombra da tarde."

José Félix, in Teoria do Esquecimento


estas paredes vazias
guardam no breu da memória
as cores de tantos quadros
que um dia arrematados
num leilão foram embora

este sofá remendado
não acolhe mais o cansaço
do homem que aqui havia
e numa tarde pôs-se a pensar
que sentia sono e dormiu
para nunca mais acordar

esta virgem em madeira
no oratório esquecida
deixou de fazer milagre
e nem prece mais ela escuta
mas implora que do peito lhe arranquem
a espada que o faz sangrar
e a levem de vez desta casa
para ir fazer companhia
a outras peças
outras velharias
num antiquário qualquer

esta cama de casal
testemunha fiel e ocular
de três ou quatro rebentos
sobre seu colchão fabricados
no tempo dos fartos dinheiros
agora se vê violentada
pela fome dos cupins
e a crueldade das traças
terá por destino o lixo
(quem viu nascer tantas vidas
não merecia este fim)

já o piano de cauda
parece aliviado
livrou-se de vez dos concertos
e embora mutildado
safou-se das vesperais
três teclas foram quebradas
não fabricam outras iguais
(também lhe falta um pedal)
mas sob um silêncio de morte
dá o seu último recital
sem qualquer toque de dedos
toca em sol sonolento
o prelúdio do nunca-mais

__________________

júlio
http://currupiao.blogspot.com


Júlio Saraiva

 
Autor
Julio Saraiva
 
Texto
Data
Leituras
913
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
11 pontos
11
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
eduardas
Publicado: 31/01/2010 10:24  Atualizado: 31/01/2010 10:24
Colaborador
Usuário desde: 19/10/2008
Localidade: Lisboa
Mensagens: 3731
 Re: A OUTRA BALADA DA CASAp/Júlio
Gostei da introdução. desconhecia o poeta.

As lembranças ficarão para sempre guardadas...os meandros que habitam a casa são meros funcionários de memórias.

Não se abata a tristeza do que guardam.

bjs
Eduarda


Enviado por Tópico
Henricabilio
Publicado: 31/01/2010 10:32  Atualizado: 31/01/2010 10:32
Colaborador
Usuário desde: 02/04/2009
Localidade: Caldas da Rainha - Portugal
Mensagens: 6963
 Re: A OUTRA BALADA DA CASA
O outro lado da vida não é necessariamente a morte...
Pode ser por exemplo a falência das memorias e das conquistas que se perderam no abraço do tempo.
E há sempre o hastear da bandeira da melancolia.

Um Feliz Domingo!
Abraçoooo!
Abílio


Enviado por Tópico
colibri32
Publicado: 31/01/2010 11:36  Atualizado: 31/01/2010 11:36
Novo Membro
Usuário desde: 27/01/2010
Localidade:
Mensagens: 9
 Re: A OUTRA BALADA DA CASA
Parabéns pela sua poesia, está simplesmente genial! Obrigado por partilhá-la connosco. Um abraço


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 31/01/2010 19:47  Atualizado: 31/01/2010 20:03
 Re: A OUTRA BALADA DA CASA
«o prelúdio do nunca-mais», belo poema da memória atravessada pelo silêncio das teclas do piano.

(E se me permite, só uma ligeira rectificação a um dos comentários acima: a expulsão do José Félix, do Xavier Zarco e do Júlio Saraiva, de que tenho conhecimento, não foi daqui, deste sítio, mas do EscritArtes, de onde eu também me retirei, depois de uma troca azeda de comentários com a então administração e com alguns dos seus indefectíveis, e em solidariedade com os três e com o Eduardo Roseira).

A nossa retirada daqui, em tempos, foi por outros motivos, como o Júlio certamente se recorda.

DM


Enviado por Tópico
Margarete
Publicado: 31/01/2010 20:07  Atualizado: 31/01/2010 20:07
Colaborador
Usuário desde: 10/02/2007
Localidade: braga.
Mensagens: 1199
 A OUTRA BALADA DA CASA ao júlio
meu pai brasileiro, sabes tão bem como eu, josé félix é um escritor, devia soar nas bocas de toda a gente. muito admiro a sua poesia. mesmo. gosto muito assim como gosto deste teu poema.


Enviado por Tópico
antóniocasado
Publicado: 02/02/2010 12:46  Atualizado: 02/02/2010 12:46
Colaborador
Usuário desde: 29/11/2009
Localidade:
Mensagens: 1656
 Re: A OUTRA BALADA DA CASA
Ola

Ficam sempre as saudades e as lembranças do que de melhor aconteceu.
Lindo poema.

antóniocasado