Crónicas : 

A BELA LOUCURA DE SER ESCRITOR

 
Os pingos da chuva batem forte no vidro da janela como se pedindo para entrar. Por entre os filetes d'agua escorrendo na vidraça consigo avistar, ao longe, réstias de luzes nos postes molhados parecendo pequeninos olhos temendo alguma coisa inexplicável. Casas fechadas, ausência de gente, o vento frio circulando na noite à procura de quem possa acariciar com o seu sopro, ou de cabelos para revolver enquanto o céu cospe o aguaceiro. O silêncio só é cortado pelo sibilar constante da chuvarada, a lua se escondeu encolhida na nuvem mais negra e espessa e não pode ser distinguida. Mas há estrelas ousadas aqui e ali piscando, quase a desafiar a gigantesca escuridão celeste. Decerto são os olhares brilhantes dos santos.

Atrevo-me a entreabrir um pouco a janela, somente breve espaço da espessura de um fio de navalha, contudo o ar gelado bate em meu rosto e magoa, impulsionando-me a fechá-la de pronto. Sento-me e passeio o olhar pelo quarto transformado em escritório. Há tanta coisa espalhada em cima da escrivaninha, tais como revistas em quadrinhos, fotos sorridentes coladas num painel de vidro cuja moldura apresenta deteriorações que o deixam sem graça, calendários do novo ano iniciado, caixas de som desligadas, cadernos de anotações, papéis contendo rabiscos, um velho Papai Noel esquecido do Natal passado, fios saindo de orifícios do computador e meus pensamentos vagando à toa por toda essa bagulhada em desarrumação.

Escrevo sem quase refletir nem dar tempo de concatenar as idéias, de maneira aleatória como se fabricasse um mosaico desprovido de sentido e destinado a não ser simplesmente mais que o nada absoluto.
Porém, desse nada o tudo vai fluindo à guisa de borboletas voando desencontradas no jardim encantado de sonhos e pesadelos do passado e do futuro. A grande metamorfose, por conseguinte, vai acontecendo a pouco e pouco, e se percebe verdadeira simbiose entre meus dedos ágeis digitando sem lógica o que nem chego a desejar e as teclas à espera em seus devidos lugares. Forma-se, então, o sentido do amorfo, o contrário do consenso, o realismo do obscuro, o irracional do indubitável. O branco completo do terminal deixa de ser aquele incessante pesadelo de qualquer escritor disposto a começar seu texto. Porque, já então, a mistura das letras preparando vocábulos e criando frases instiga, entusiasma, anima. Desapareceram os fantasmas do contexto para a idealização contextual.

Nesse ínterim, a chuva deu trégua às janelas sobre elas restando tão-somente drops prateados que se agarraram à vidraça. Eu, sem atinar o por quê, escrevo palavras desconexas como "Esmeralda apaixonada", "Zé que procura", "Joana sem bunda". De qual resquício de memória esse palavreado arrevesado achou de aparecer? Decerto de minhas quimeras de outrora, provavelmente, talvez, de meditações ainda não concretizadas na mente atordoada em parte devido ao silêncio agora não quebrado pela chuva, ou, quiçá em virtude do repentino e nada esperado som de uma FM local plugada por alguém alhures. Nem todas as coisas tem explicação, afinal de contas, e ao escritor, bem sabemos, é dado o indissolúvel direito de não ser uma pessoa normal como as demais. Sua capacidade inventiva não pode ser subestimada em nenhum momento. Não se questione a louca criatividade de quem vive para devanear e fazer sonhar, esse incrível ser humano que abre a mente dos semelhantes e nela expande possibilidades impensadas.
Gilbamar de Oliveira Bezerra

 
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GilbamardeOliveira
 
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