EVOÉ, MEU MESTRE!
Vou para junto de ti, sento-me no beiral da tua casa precipício
Pouso os olhos na pornografia da tua cara ridícula
Mijo-me a rir, Walt, dos teus olhos vampíricos e carnudos
Pranhos de mistérios desvendados e obscenos!
(Aqueles que nunca revelamos às paredes do quarto!)
Penso em ti como uma prostituta pensa no último gajo
Que se deitou com ela, pagou e não fodeu!
Sim, Walt, tu és apenas a retórica das minhas ideias desfocadas!
A gata que subiu aos telhados para se prostituir e não foi consolada!
O marinheiro que ataram ao mastro e não violaram!
O sequioso que morreu de sede diante do poço e não descobriu água!
O vadio que pediu esmola à porta de todas as igrejas e morreu de fome!
Evoé, Meu camarada! Evoé, Meu amigo! Saudações, Meu Mestre!
É perante ti que beijo os teus pés enrodilhado de piedade!
É perante ti que sou a pedra que todos pisam e não dão por isso!
É perante ti que visto a farpela da loucura de ser mais um comum!
Sento-me no jardim da estupidez à espera de te ver passar,
À espera que te cruzes comigo de mala ao ombro, com esse jeito idiota
Que alucina de vénias o meu coração esfrangalhado pelas dores alheias,
Mesmo quando sonho com todos os poetas românticos
Que agridem a palavra à machadada e sentem-se realizados!
Ou esses escritores de cordel que cagam as páginas brancas
Com histórias de vizinhos enforcados na sanita e são best-sellers!
Sim, Walt!
Tua apenas a mesquinha civilização que te adornou de escarros!
Os preservativos que usaram para impedir que a maníaco-fobia
Dos teus versos sem nexo e sem vertigem
Lhes emprenhassem os intestinos de todos os pecados naturais
Consumidos nos teus escritos!
Traz até mim a cegueira da luz sem fonte, Meu Mestre!
Traz até mim o ácido cloro das tuas ideias de pia!
O éter penetrante dos teus desígnios de merda!
Ah…! Pudesse eu vomitar o teu senso comum sobre o mundo!
Quebrar as janelas obsoletas que me separam da realidade e dos sonhos!
Imolar meu corpo no lixo dos astros que aterram em mim
Mesmo quando me precipito ao seu encontro
Ou me perco no medo de ir sempre e voltar sem querer…!
Ah…! Walt!
Que a humanidade me crucifixe em todas as árvores podres!
Que me violem até a morte dissecar de raiva os meus membros!
Eu quero ser a vagina de todas as prostitutas!
Os dedos das virgens! O esperma dos solitários!
Os ossos secos que os cães entregam à lama!
O trapo que de tão usado se joga no lixo!
O vómito do bêbado! O suspiro do velho!
O cadáver ocioso que ninguém enterra!
A faca partida no peito! O escárnio do mendigo!
A fome do operário! O acidente de viação!
A morte de todos os que quiseram viver e não puderam
Porque tudo tem limites… A vida também…
Não há limites para a morte, Walt!
Meu mestre! Meu companheiro! Meu camarada! Meu anjo! Minha coisa!
Que possa odiar o mundo com a mesma força com que te odiando te amo!
Que pise o mundo com a mesma raiva com que te pisando me deixo subjugar!
Que cuspa sobre o mundo o teu orgulho, a tua agonia, a tua inacessibilidade!
Oh, Walt! Porque morreste só para que eu não te conhecesse?
O mundo, Walt, o mundo! O mesmo dos teus ridículos versos!
Pois que ele cuspa em mim todas as frustrações sexuais!
Todos os desempregos! Todos os despedimentos! Todos os êxtases!
Que me atem ao pescoço todos os amores convencionais e inconvencionais!
Os pseudo-interesses! Os interesses dos governantes
Que se atulham de receitas económicas e reproduzem-nas como pulgas
Que me convencem a amá-los como a um deus…!
DEUS SOU APENAS EU, WALT!
DEUS, APENAS A MINHA GLÓRIA!
DEUS, AEPNAS EU!
DEUS, PARA QUE POSSAMOS MORRER OS
DOIS NO MESMO CEMITÉRIO!
PARA QUE A MINHA GLÓRIA SEJA ENTRERRADA JUNTO À TUA
REVOLTA ESTÚPIDA!
QUE EU, CONSUBSTANCIADO COMIGO, ERIJA O CÉU DA
LOUCURA!
PARTICIPE DE TODAS AS CONVULSÕES SOCIAIS
SÓ PORQUE ME DÃO PRAZER!
QUE APERTE ATÉ SUFOCAR OS COLARINHOS SNOB
DOS IDIOTAS QUE NOS APLAUDIREM!
QUERO ENFORCAR A CIVILIZAÇÃO!
AH MEU HEROI DAS GERRAS ADIADAS!
MEU HERÓI DAS VIDAS OCULTAS NA MINHA ESTUPIDEZ!
PROSTITUTO DOS MEUS ROMANCES DE PAPEL!
TU, WALT, QUE NUNCA SOUBESTE SE A TUA VIDA ERA
REALMENTE TUA
PORQUE ME PROCOCASTE COM OS OLHOS ESQUIZOFRÉNICOS
DE UM MAÁRTIR EM DIA DE FOLGA?
PORQUE ME DESTE LUZ, QUANDO EU SÓ QUERIA UM CAMINHO!
PORQUÊ WALT! PORQUÊ?
NÃO SERIA MELHOR CEGO?!
Oi, meu irmão…
Oi, meu companheiro…
Oi, desprezível!
Porque decepamos crianças para que a esmola seja mais farta?
Porque cegamos mulheres para que a vida seja mais serviçal?
Porque trazemos ao pescoço a coleira da destruição
- Não da guerra, Walt… Não da guerra…!
Essa é a nossa glória
Ter e não ter o mundo no bolso hipotético do casaco
Da nossa falta de imaginação…
António Casado
Revisto para o Luso Poemas
1 Outubro 1992