A PESSOA AMADA
Fernando Pessoa,
Instrumentoterreo da sonata dos meus ais
Um guizo flutua entre o céu e a terra,
Um barulinho bom, uma harpa
A cortejar meu coração.
Aceitei os seus encantos
Porque eras minha vida viciada
Porque eras minha luta embriagada
Por és um Zeus de Deus
Um formidável companheiro nas noites quietas
Uma companhia que não se faz presente
E que me deu a mão como um arrimo
Que escrevestes a mim cartas de amor,
Amor de de amar, amor de irmão.
Pai foste o meu, mais demorado
E eu irmão de tuas mãos que afinam o lápis
Primo de teus encantados sermões das montanhas
Que te multiplicastes, um milagre do pão,
Da fome, da miséria alheia, que te torturava.
Aprendi contigo, pessoa do meu rebanho,
A andar perto e distante dos outros, perigosos
Visto que o ataque do coração, eu reagia,
Como se sabe, dando mil pulos mortais.
Amo a pessoa de Pessoa bom, e lindo em tudo
Na composta e combinada farda preta
Que se via a tarde, quando regressavas,
Não se sabia de onde, de um velório de outro,
Ou de tua própria morte, exausto
De fazer milagres.
Acompanhado de perto e de longe dos fariseus,
Que te acomodavam no leito da estrada
Quando seguias bêbedo, de amor, de sonho,
E como se não bastasse o que deixastes impresso
Nas almas dos outros,
Ainda recitavas por onde caminhavas,
Até à beira dos rios, numa nostalgia
Fácil de se sentir, em ti, Fernando.
E nós, zelosos por essas tuas filhas,
Fomos nos casando, cada um com uma,
Ah, a bigamia, aos teus olhos seriam,
Incisivamente perdoável,
Porque amastes a muitos, amastes aos muitos,
Todos, até o dia em que nos deixastes.
Amo toda gente que são pessoas assim.