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Não acordem os pássaros

 
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Não acordem os pássaros, pois embora o canto por eles emanado encha o ar de alegria, este silêncio é bem-vindo.
Como é bem-vinda esta dormência, mesclada à sonolência, que se dissipa sobre esta matéria inerte e passiva.
Dezembro se aproxima e logo virão os meninos a subirem pelas mangueiras, bocas amarelas que com as frutas se deliciam.
Virão também os arranjos natalinos que, desde criança, tanto me angustiam. Nunca, por mais que perscrutasse, consegui captar dessas sensações as origens.
O primeiro de ano era então ainda pior. A perspectiva do que viria, aliada ao sintoma de coisas importantes inacabadas, projetos deixados pelo caminho…
Nem mesmo quando já adolescente, nos Reveillons, embriagado, aquelas vibrações me fugiam. À meia noite, quando fogos de artifício anunciavam a chegada do ano, era como se os mesmos estourassem dentro do meu peito, abrindo-me crateras, destruindo-me as entranhas.
Mais tarde percebi que se manifestavam prenúncios de uma felicidade que nunca alcançaria, não que aparentemente houvesse motivos. Simplesmente o universo não se encaixava às minhas expectativas.
Mesmo os meus momentos mais felizes; o ingresso na universidade; Madalena, o nascimento dos filhos, eram cerceados por uma nostálgica aura negativa.
Apesar de tudo, fiz o que me cabia, amei, chorei, trabalhei, plantei árvores, tive filhos, me aventurei em alguns rabiscos, projetos de um livro.
O vaivém da rede, na cadência dos meus pensamentos, traz noites, encerra dias.
Por quanto tempo aqui estarei, a espreitar os meninos, acompanhando o voo dos pássaros que agora dormem…
Desvio, por instantes, a minha atenção para o féretro que segue à distãncia, acompanhado de louvores e cantigas.
Não imagino quem seja, não me interessa. Já tantos vira que há muito a minha curiosidade se esvaíra.
A casa está vazia, quieta, a mobília antiga resiste ao tempo.
Todos se foram. Madalena para sempre, os filhos ás suas conveniências. Às vezes aparecem, não sei se por obrigação e, nessas ocasiões, um mal-estar se estabelece.
Com suas indagações quebram o ciclo, aborrecem-me, pertubam o meu silêncio.
A casa é grande e receptiva, e tenho essas mangueiras que sombreiam as minhas tardes.
Acordo cedo, recolho-me quando me convém.
À hora das refeições a voz de Madalena, distante.
- Vem comer Francisco!
Ouço passos que se aproximam…
Mantenho-me na defensiva.
Quem seria o intruso…
- Pai!
- Por que não foste ao féretro de Amadeu?
Mantenho-me calado.
Espero, assim, não acordar os pássaros que, presos dentro de mim, já não alçam voos. além dessas mangueiras, dessa rede, dos meninos que hoje não vieram, de Madalena que não virá…
 
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Massari
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Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 08/01/2010 11:39  Atualizado: 08/01/2010 11:39
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: Não acordem os pássaros
Fiquei assim, meio perdida nas impressões que me entraram sem licença e reconheceram o próprio eco tão cá dentro, e a imponderablidade da vida, mais!, da escrita que aqui nos mostra. Até que ponto o fluir da imaginação aguenta a resistência do dique da nossa própria vivência? Até que ponto nos conseguimos recatar?...

Um abraço...


Enviado por Tópico
eduardas
Publicado: 08/01/2010 12:37  Atualizado: 08/01/2010 12:37
Colaborador
Usuário desde: 19/10/2008
Localidade: Lisboa
Mensagens: 3731
 Re: Não acordem os pássaros
Fiquei dormente e dolente neste texto magnífico.

Com estas palavras acordaste os pássaros, pois existem e estão vivos em ti.

bjs
Eduarda


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 08/01/2010 14:25  Atualizado: 08/01/2010 14:25
 Re: Não acordem os pássaros
Ola Poeta.

Perdi-me neste teu texto fantástico.Acredito que existam pássaros acordados dentro de ti, na necessidade de se libertarem e voarem rumo ao Sol.Um dia vais escrever os teus pássaros de fogo

Beijo azul


Enviado por Tópico
antóniocasado
Publicado: 08/01/2010 17:50  Atualizado: 08/01/2010 17:50
Colaborador
Usuário desde: 29/11/2009
Localidade:
Mensagens: 1656
 Re: Não acordem os pássaros
Ola

Uma nostalgia, uma desilusão, um rever o passado...
Afinal tudo se conjuga e permanece dentro da necessidade de viver onde encontramos nas pequenas coisas motivos para de novo renascer.

Revivi o texto e parece-me que a solidão também.
Talvez não seja para estar bonito, porque o que nos dói não é para ter beleza... Mas para conter dor!

antóniocasado


Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 08/01/2010 18:05  Atualizado: 08/01/2010 18:05
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: Não acordem os pássaros para massari
gostei de te ler...sabes que no fundo,no fundo,acho que qualquer ser humano é solitário.um poeta talvez o sinta mais.ou escreve-o melhor.

beijinho,
alex