Gritos exasperados ecoavam por montanhas e amontoados sem que ninguém os pudesse ouvir. Provinham de uma discussão tão antiga que até já o próprio Tempo se esquecera de quando tinha começado. Era a eterna luta entre a Força e o Destino que já nem a Razão acompanhava. Mesmo a Paciência já desistira de esperar que a Compreensão lhe dissesse o porquê de tanto alarido, que não levava a lado algum.
- Já disse muitas vezes e volto a dizer: Eu, Destino, não preciso de ti, Força, para acontecer! O que está escrito, escrito está! – Exclamou mostrando uma das suas muitas caras; por vezes conseguia ser muito falso e inconstante.
A Força – também reconhecida como Perseverança, Teimosia ou Esperança – estava indignada com aquilo, mas não ia desistir:
- Pois claro que precisas! E enquanto as forças não me faltarem vou continuar a tentar provar-te que estás errado!
- Errado? Eu sou o Destino! Sei tudo o que vai acontecer! – Gabou-se ele com arrogância. Era certo e sabido que este e a Justiça frequentemente se envolvidos em confrontos pela falta de equidade nalguns dos seus actos.
- Mas também te podes enganar! – Teimou a Força.
A Preguiça, sonolenta, deitada num sofá, fez sinal à Manipulação e proferiu bocejando:
- Vá, faz qualquer coisa que tenho sono e já não os posso ouvir. – Até nas palavras poupava. Geralmente eram pequenas e poucas.
A Manipulação pensou por alguns minutos e depois disse:
- Já sei! Tenho um plano...
Dessa forma a Força aproximou-se e as duas cochicharam durante horas a fio para conseguir enganar o Destino.
- Vou-te provar que estás errado! – Exclamou a Força, toda sorridente, quando voltou com passos energéticos.
- Então fá-lo! Não te esqueças, eu sou o Destino e já sei onde isto vai acabar! Não há nada que me surpreenda, excepto a brincadeira que a Surpresa me preparou no outro dia.
A Força pediu, de imediato, ao Destino que a seguisse.
Caminharam os dois por vales e montanhas, desbravaram florestas, seguiram trilhos marcados e atravessaram desertos. Por fim, a Força apontou para a frente e disse, entusiasmada:
- Aqui está a prova!
- Uma cidade? Estás a dizer que a prova de que é preciso força para cumprir o destino é a raça Humana? – Riu-se ele. – Não sabes como são fracos?
- É aí que tu te enganas. - Contrapôs a Força com um brilho nos olhos.
- Então vamos fazer um jogo…
Aproximaram-se de uma escola primária à procura de crianças. A Força sabia que a batalha estava ganha; era nos mais novos que repousava maior esperança.
Durante dias a fio observaram o comportamento de algumas crianças. Todas pareciam diferentes entre si, mas o Destino nunca estava satisfeito. Resmungava para consigo que tinha de ser o miúdo perfeito.
Certo dia, ele encontrou o que procurava. Aproximou-se de uma criança e revelou-se, dizendo:
- Olá rapaz. Eu sou o Destino.
A criança olhou-o com indiferença.
- E eu sou o Pai Natal. – Respondeu com desprezo.
A Força limitou-se a ficar no silêncio. Tinham observado a maneira como aquela criança estava na vida. Era mimada e estava habituada a que nada lhe faltasse. Roupa de marca, facilmente influenciada por modas, tinha uma atitude arrogante para com os outros miúdos… O seu ar emproado combinava com o olhar de desdém que deitava ao Destino, como se o desse por garantido. Estranho era que ele parecia ser o mais respeitado ali dentro e todos os outros queriam ser como ele, apesar da sua crueldade.
- Ai sim? Então quero fazer um jogo contigo, Pai Natal. – Continuou o Destino ignorando o facto de que a criança lhe tinha voltado as costas. – Tens um destino terrível, mas ofereço-te a oportunidade de o mudar, se responderes correcto a um enigma.
Isto interessou à criança. Ficou subitamente atenta, certamente esperando causar impressão no Destino. Tão novo e já tinha aprendido a ser presumido.
- E qual é o enigma? – Inquiriu.
Mesmo que não queiras, tu tem-las.
Elas mostram-te o que está acabado
Mesmo que não queiras saber
Observa bem, pois está aqui dado.
Responde certo e tens mais uma,
Ignora e também a terás.
Ainda que tudo fique para trás
Sempre contigo esta levarás.
- Isso é mesmo estúpido! – Exclamou a criança, enfatuada. Apesar de tudo, ambos sabiam que o menino ia conseguir. Uma das razões pela qual tinha sido escolhido era a sua inteligência grandiosa.
Após cerca de cinco minutos a reclamar e a queixar-se do enigma feito pelo Destino, a criança olhou para a Força com desdém e disse:
- Ei, vê lá se me ajudas! Afinal serves para quê?
No entanto a criança não estava a usá-la, apenas tentava assustá-la como fazia com os meninos da sua idade pois não a encarava como um valor.
Mais cinco minutos volvidos, o rapaz ainda continuava a queixar-se. O tempo passou e o Destino começou a perder a paciência para com aquele miúdo mimado. Incrível como continuava a ignorar a Força. Por fim, lá deu a resposta:
- Que enigma mais estúpido. Tem aí a resposta! Memórias.
- Muito bem, está certo. E agora, o que queres para o teu futuro? – Perguntou o Destino batendo o pé, triunfal.
Ouviram os pedidos do rapaz – brinquedos, principalmente – e foram embora.
- Vês? Eu disse-te! Esta é a prova que não é preciso força para se cumprir o destino. Lamento, mas perdeste minha cara amiga.
Mas a Força não se deixou enganar; o plano estava a correr exactamente como combinado com a sua grande amiga Manipulação.
- Isto ainda não acabou. – Asseverou.
Desta vez foi ela quem procurou por um menino. Demorou mais do que pensava. Precisava de um miúdo que fosse exactamente o oposto do anterior. Encontrou-o sentado a um canto, a desenhar. Roupas humildes, atitude discreta e simpático para com aqueles que o rodeavam. Não se achava superior a ninguém, adorava poder ajudar quem lhe pedisse mas, surpreendentemente, os outros miúdos pareciam não gostar tanto dele – ou pelo menos não o respeitavam da mesma maneira. Mas ele não se importava. A única semelhança que tinha com o primeiro era a extraordinária inteligência.
- Agora faz o mesmo com esta criança. – Pediu a Força.
O Destino aproximou-se dela, relutante e sem entender o porquê daquilo.
- Olá rapaz, eu sou o Destino.
- Olá Destino, eu sou o João – Apresentou-se num tom harmonioso, desenhando uma vénia educada.
- Quero fazer um jogo contigo. O teu futuro é negro. Se acertares neste enigma podes mudá-lo e escolher aquilo que queres.
- Certo. Então e qual é o enigma?
Mais uma vez o Destino recitou a charada e ficou à espera que o rapaz começasse a resmungar. No entanto, a atitude deste foi muito diferente. Em vez de praguejar ele aceitou de bom grado o desafio e, por fim, olhou em volta.
- Olá Força! – Disse estendendo a mão e agarrando na dela. Não demoraram mais que três minutos para resolver o enigma do Destino.
Surpreendido, este disse:
- Muito bem, conseguiste resolver o enigma. Agora escolhe o teu futuro.
O rapaz apenas fez três pedidos:
- Uma família, felicidade e amigos verdadeiros.
O Destino acenou com a cabeça e desapareceu com a Força.
- Notaste a diferença? – Perguntou ela. – Ele reconheceu-me logo e usou-me para descobrir o enigma.
- Mesmo assim eu ganho.
- Mas… porquê? – Insurgiu-se a Força, furiosa.
- Porque o futuro deles é igual. Eu menti, não vou alterar nada. Ambos estão destinados a acabar na miséria e sozinhos. E tudo isto prova que eu não preciso de ti, claro. – Concluiu, de narizinho no ar.
Com um sorriso de orelha a orelha, a Força mostrou-lhe o futuro das crianças.
A primeira sempre fora rica. Ao longo da vida tivera amigos – ainda que por interesse –, uma família que o transformou num menino mimado e com dinheiro, muito dinheiro. Até um dia em que o Destino lhe esticou o pé. Foi nesta altura que ele não reconheceu a Força nem a usou para se levantar. Acabou os seus dias infeliz e sozinho, tal como previsto.
Já João foi diferente. Sempre vivera sem nada. Fora criado pelos avós, vivia na pobreza e nunca tinha sequer recebido presentes no Natal. No entanto, mantinha viva a esperança de que um dia tudo iria mudar. E mudou. Quando o Destino lhe pregou uma rasteira, João não se contentou em perder o que mais amava e usou a Força de novo para conseguir ultrapassar tudo. Acabou a sua vida feliz e com a família que sempre sonhou à sua volta. Ao seu funeral foram dezenas de amigos verdadeiros que sempre o tinham estimado muito.
O Destino estava de boca aberta.
- A diferença está na educação. Quando temos tudo é muito fácil ter mais alguma coisa sem fazer nada. Por isso é que o primeiro rapaz não me reconheceu. – Explicou a Força. – Já quando não temos nada é difícil fazer alguma coisa para ter tudo. Mas o João não desistiu e conseguiu porque sempre foi educado a lutar pelo que queria. A culpa disto é dos pais, que sempre mimaram muito o primeiro miúdo; ele não ficou preparado para a vida. O João ficou tão bem preparado que conseguiu até mudar o seu próprio destino.
- Então… eu não tenho razão? – Apercebeu-se o Destino, acometido.
E foi assim que o Destino aprendeu uma lição: é muito fácil deixarmos que o futuro chegue até nós. Difícil é utilizar a Força para o moldar. E é de acordo com isto que devemos educar as nossas crianças.
“ Se o Destino estivesse escrito, a Esperança não tinha sido inventada…”
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