Ecoam do alto das florestas em pó os gritos latentes da entrega. Quando o acto for cometido, já a terra estará despida de limoeiros e pronta para ser penetrada por mais um caixote. É esse o destino da mãe de nós: ser furada uma vez após outra até ao centro dela, ou até que se veja o lado de lá. Depois, os que restarem poderão cumprimentar os seus opostos, e poderão encontrar-se a meio caminho, no calor da lava aberta por mais um caixote carunchoso. É essa a verdadeira razão pela qual se santifica a vida e a morte: cortar a madeira que paira no ar e enfiá-la prensada debaixo de quantos palmos de terra houver.
O psicólogo dirá que se enterra para esquecer. Ou para ultrapassar, se for mais experiente. O filósofo dirá que os princípios éticos da cultura moderna nos obrigam a respeitar os rituais comuns dos que partem deste mundo, institucionalizados pelo costume e pelas longas tradições. Eu digo apenas que é um exercício de curiosidade: arranjar uma desculpa plausível para encontrar o lado de lá. Arrancar uma árvore, fazer dela caixote receptor e introduzi-la bem fundo. Repetir milhões de vezes. Em vez de fertilizar, esburaca. Com a repetição, havemos de encontrar o lado de lá, ou alguma coisa de valor.
É um exercício egoísta: enterrar para dentro e não queimar para fora. É também uma noção de propriedade algo esquizofrénica, que obriga os mortos a viver em função dos vivos. É também destrutivo para nós e para o nosso mundo. Finalmente, mas não por fim, é a confirmação da característica humana. A nossa curiosidade, a nossa indiferença, os problemas em enfrentar o desejo infinito de guardar o que é supostamente nosso em delírios egoístas, o nosso bichinho auto-destrutivo que nos guia para o que não funcionou ou ainda não se experimentou. Diz-me como morres, e dir-te-ei quem és.