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Gorda enjeitada

 
“Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.

Mas finge sem fingimento.

Nada 'speres que em ti já não exista,

Cada um consigo é triste.

Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,

Sorte se a sorte é dada.

Ricardo Reis"





Ultimamente, sem saber bem porquê tenho lido o meu diário. Regredi dez anos no tempo, e mesmo nessa altura eu era triste. Triste demais para uma menina daquela idade. O mais engraçado é que ninguém soube ou sabe, pois é uma tristeza que guardo para mim, bem no fundo meu ser. Podem perguntar a quem quiserem, pois o que vos dirão é que a Paula é e sempre foi muito animada, muito feliz, faz toda a gente rir e sentir-se bem. A Paula sempre foi assim e solta gargalhadas que se ouvem no “fim do mundo”, nem parece que tem aquela doença... Esta é a Paula que eles conhecem, pois a verdadeira Paula não é bem assim. A verdadeira Paula aprendeu desde cedo a camuflar a sua dor para não magoar os outros, pois doía-lhe demais ver a sua mãe sofrer na cabeceira da cama daquele maldito hospital sem poder fazer nada, sentia-se culpada por ter uma doença que por pouco não a matou e dilacerava-lhe o coração ver a Mãe sempre tão triste, a rezar para que ela se curasse, a fazer promessas a Deus e todos os santos e a esmorecer de cansaço entre o emprego, o hospital e a casa.
A minha Mãe sofria comigo!! E eu, por muito mal que estivesse percebia todo o mal que, mesmo sem poder controlar eu lhe fazia. Que podia eu fazer, senão ocultar as dores e as lágrimas para que ela não sofresse ainda mais? Por vezes pergunto-me o que terei feito de tão errado para merecer isto. Dói muito folhear o diário de uma criança e ao ler deparar-me com seu o sofrimento e ver que ela escreve que quer morrer vezes sem conta, em vários dias, meses e anos diferentes! E dói mais saber que essa criança fui eu e que afinal as coisas não mudaram assim tanto. Ainda me revejo nessa criança que fui e que por vezes me apetece voltar a ser.
É muito duro ser assim tão triste, tão sozinha, ainda que à minha volta tenha sempre muita gente que ri comigo e com as minhas piadas. É duro ter que viver com uma doença sem explicação e sem cura, ver o corpo deformar-se com a cortisona e ver os olhares de troça e reprovação que se abatem sobre mim. Saber que se vai ser sempre a gorda, a rejeitada que ninguém quer, que ninguém ama. Quem vai querer uma gorda ao seu lado nos dias de hoje? Quem vai querer partilhar os olhares trocistas, reprovadores ou as piadas de mau gosto? Todos querem a mulher perfeita, que eu não sou. Sempre fui muito sozinha mesmo. Sou a menina dos olhos tristes que vive detrás das muralhas do seu castelo de nuvens e não há príncipe encantado que lhe valha. É assim a minha vida, não há nada que ninguém possa fazer. É o meu fado. Ninguém me vai passar a mão pelos cabelos e olhar-me nos olhos para dizer que quer ficar comigo para sempre, proteger-me, completar-me e afastar-me do mundo que me faz sofrer. Estou cansada, mesmo muito cansada de viver...


Fui à floresta porque queria viver profundamente,sugar o tutano da vida e aniquilar tudo que não fosse vida.E não,ao morrer,descobrir que não vivi. (Dead Poet Society)

 
Autor
Paula Correia
 
Texto
Data
Leituras
1922
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