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CARTAS DE MALQUERER 3

 
Junto das estepes que povoam os meus sonhos de gritos um jasmim traz a silhueta breve de um corpo conhecido. O pêndulo de uma ancestral saudade bombardeia os tímpanos com invulgar coerência. Num miradouro feito à medida de um escorpião desejo observo os retalhos de uma incoerência como aquela que marcou de vias-férreas o antro nítido de todas as ausências quando as palavras meticulosas eram vomitadas pelas pontas das unhas com a precisão de um ponta de lança envenenada e eu limitava-me a ecoá-las dentro da Creta que criei em mim.
Sei que foi assim porque quando te vi partir pela noite dentro como um corvo torturado de não querer ir um poço moribundo alagou-me a coluna e riscou na carne o arabesco de um Génesis qualquer para justificar o pássaro morto no deserto. Agarrei-o com os dentes como se mordiscasse a tua pele e à falta de outro nome chamei-lhe amor. Sentei-me então num banco de cimento com o ângulo perfeito duma dor estatística e indecifrável vestida de um polar frio adormecido sobre as pétalas puídas de Florália quando eu pensava que a Primavera era um desenho cubista e tudo se encaixava numa nuvem de odores. Nesse banco tracei o perfil apátrida de um sentir geminado de víboras. O cálice que ergui não foi de cristal mas antes o pungente reflexo de um foguete explodido na mão durante o místico funeral da gentileza. Se o traço de algum sorriso ainda resplandece onde apenas o negrume acampa é porque um Sebastião ainda vive dentro de um relógio à espera que se dissipe o nevoeiro e o soar do sino anuncia o Ómega e o Alpha de uma teologia destituída de precisão. Nesse banco coloquei a luneta incrustada de pedras do presente e pela última vez – sim pela última vez – consegui decifrar o código de uma Gioconda desenhada pelos meus dedos débeis de percorrerem a tua carne e insuflarem o teu corpo pelos pulmões adentro como se uma Amazónia rompesse pela íris do olhar inchado de saudade e um Ceará tomasse o seu lugar.
Acredita… não quero mais o teu sexo! Na ilha de fogo dos meus nervos transparentes já não há lugar para a tua sublime permanência. A combustão que alimentou o desejo feito unicórnio alado que corria pelos prados da emancipação como um vento ou um tormento não é mais que a solidez de uma mistura química que designam como água porque não lhe podem chamar mais nada! Tentei quanto pude escrever um dicionário de novas locuções onde as palavras assumissem o valor das palavras e as coisas o valor das coisas. Nem um Esperanto com valor de língua fluente se salientou do intento de compreender porque quando penso no teu sexo algo de inútil desaba sobre os meus sentidos e uma serpente me surge feita deus ou demónio. A cratera aberta dentro de mim foi preenchida pelos pêlos de um esquimó bêbado e quando me lancei do abismo crendo que era águia nunca cheguei a tombar em lado algum porque um Gabriel saído das escrituras estendeu a espada ardente e fez questão que eu acreditasse nele.
Para que quero o teu sexo? A fantasia ridícula de uma fusão molecular decidida pelo destino de nos termos nos braços abertos quando na tua chegada um sorriso leviano de quem quer sempre mais dava lugar à complacência de um espelho quebrado cujo reflexo pendia nas videiras com as uvas azedas e onde cada um era apenas o esboço daquilo que um dia sonhou ser possível. Nem quando o fulgor da manhã nascia e exigia da minha alma uma Cleópatra de horrores num Egipto afundado em punhais trazia com ela um naco saliente do que era a nossa entrega. Nessa fantasia repartia a alma em pedaços e entregava-te ciente de que eras o senhor da minha vontade absoluta como se soubesse o que isso era ou tivesse alguma noção de vontade. Na boca o húmido salivar do teu esperma amargo como um limão arrancado ao tronco pela incisão de um sopro leviano ainda me envenena o sangue sugado pela sanguessuga do desespero!
No banco de cimento lavro o testamento da única glaciação possível onde nem posso pretender ser Noé porque a concepção da multiplicação ultrapassa o breve requisito dos casais e o amor adquire a espontaneidade de um livre arbítrio próprio dos poetas. A barca que possivelmente nunca construirei seria feita de teias de aranha e estigmas de malmequer para assim poder reter as chuvas dentro da amargura de um alguidar improvisado pela dor. Para quê terminar se o mesmo banco onde me sento retrata a ejaculação precoce de uma humanidade sem caminho nem direcção? Olham para o sofrimento que se lança dentro de mim como um falcão e apedrejam o que resta da carne cansada de se dar nas curvas falidas de uma estrada traçada no cume de uma montanha. Acusam-me com dedos de aço togas negras e batinas roxas ensaiadas em breves discursos de sabedoria contidas nas imensas razões de vírgulas desconhecidas que eles próprios fermentam nos resquícios de cadeirões almofadados e às quais chamam leis ou preceitos. Exibem em pacotes de castanhas assadas o manancial dos bons costumes e apontam a família como um exemplo literato da harmonia que não praticam pelo simples facto de serem homens e mulheres comuns. Nas concepções idealistas transformam a unidade na supremacia do macho e na cativa obediência da fêmea e rebentos. São o que são! Nem quando lhes apresento o limão aberto dentro do meu peito isso lhes dá descanso. Remetem para a pena a pena e deixam ao dó a capacidade de uma serenata onde o culpado de todas as frustrações continua a ser o meu desejo por ti e a loucura – porque é de loucura que se trata – é o karma fictício de um enxovalho estendido à janela de um primeiro andar de uma casa em ruínas.
Tu que podias autopsiar as palavras com um sorriso estrelado e um breve beijo na minha insaciada pele consegues apenas ser o altifalante da multidão que deseja manifestar a culpa e a ironia como se o manifesto fosse a personificação da individualidade da crítica. Exibem todas as teorias que desconhecem para reforçar a infelicidade de quem nunca pôde querer mais nada que os estereótipos amestrados que uma educação viciada lhes enfiou pelos ouvidos como quem cata piolhos e se sente realizado. Sempre te disse que apesar de sermos geneticamente iguais a função da cúpula repartia-se por nós como o messiânico pão foi repartido naquela ceia de traidores antes do desesperado ciúme de Judas por Pedro. Ainda que não sejas Judas e nem eu Cristo o horripilante sabor adocicado do teu sangue marcou em mim a necessidade de um eclipse permanente do corpo e da alma marcando uma alucinação própria dum estupefaciente que se prova e quer mais. Nós éramos um casal… Um casal é dois. A necessidade teórica de serem macho e fêmea é a mesma que serve para definir a cor do céu ou do mar. Existem só por si para além de apelativos e ideologias. O céu será sempre a abóbada azul ou qualquer coisa que o represente como a imensidão. O mar será sempre um manancial de vida. Um casal é dois. Eu e tu éramos dois! Porque teríamos de ser diferentes? O amor está para lá das fronteiras da lucidez ou da razoabilidade de qualquer coerência. A inerente beleza da paixão reside no brilho do olhar traído por um sorriso nos lábios secos e na respiração ofegante quando a sudação das mãos são o sinónimo de um nervosismo prenunciador do desejo. Sim… iguais dentro de tudo o que nos fazia diferentes. Tu e eu éramos dois homens!
Derramei então a palavra amor pelas pedras graníticas da calçada e sobre elas me arrojei convicto de que a serpente se apiedaria de mim e te traria de volta. Mas um carrossel de ilusões numa feira de magos tripudiou da minha noção de poleiro onde cantava com a voz matinal de um galo pronto para ser decapitado e continuaram a permitir que fingisse que me sentava num banco de cimento feito por medida a dar conta de todas as agruras que a imposição de um leito de solidão ainda resguardava do calor a derme visivelmente congelada do espaço que ocupavas nos meus lençóis. Hoje pergunto às metáforas por ti… Surge um Camões sem imaginação a clamar aos ventos que nem sei quantos são a teoria metafísica da paciência jogada a cerveja nas mesas dos cafés e onde posso embriagar-me de estar só com a mesma alegria com que me agarro às paredes e ainda escuto o som da tua voz.
Quem me dera ter-te aqui…

António Casado
30 Outubro 2009

 
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antóniocasado
 
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Enviado por Tópico
master22
Publicado: 28/12/2009 21:48  Atualizado: 28/12/2009 21:48
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Usuário desde: 18/06/2008
Localidade: Mafra
Mensagens: 18
 Re: CARTAS DE MALQUERER 3 (FIM)
Belo texto.
Muito rico do ponto de vista literário e abordando um tema,muitas vezes tabu...
Gostei
abraços