Paulo Monteiro
DEDICO ESTE ENSAIO AOS CONFRADES DA ACADEMIA DE ARTES, CIÊNCIAS E LETRAS CASTRO ALVES, DE PORTO ALEGRE, QUE ME ELEGERAM PARA A CADEIRA Nº 13, DE MEMBRO CORRESPONDENTE, CUJO PATRONO É AURELIANO DE FIGUEIREDO PINTO
Aureliano de Figueiredo Pinto é reconhecidamente um dos mais representativos poetas gauchescos do Rio Grande do Sul. À exceção de um belo artigo do passo-fundense Hilton Luiz Araldi pouco mais se encontra sobre a vida do autor de “Romances de Estância e Querência”.
Poeta e romancista, nasceu na Estância São Domingos, município de Tupanciretã, no primeiro dia de agosto de 1898, filho de Domingos José Pinto e Marfisa de Figueiredo Pinto. Alfabetizado em casa, pela própria mãe, partiu para Santa Maria, em 1908, onde cursou o ginásio. Publicou os primeiros poemas em 1914, na revista “Reação”, de Santa Maria. Dois anos depois se transferiu para Porto Alegre, preparando-se para cursar Direito, mas optou pela Medicina. Introspectivo, recebeu o apelido de “O Corujão”.
Em 1918 divulga novos poemas em revistas e no “Correio do Povo”. No ano seguinte envia ao amigo Antero Marques o poema “Toada de Ronda”, que introduz o “nativismo de feição moderna” em nosso Estado. Assim, insere a literatura rio-grandense num amplo movimento de renovação da gauchesca iniciado no Uruguai. O poema, em sua forma definitiva, seria publicado em “Romances de Estância e Querência – Marcas do Tempo”.
Trata-se de um movimento que tem suas origens na revista “El Fogón”. “Em setembro de 1895 – escreve o professor Daniel Vidart – um conjunto de entusiastas burgueses montevideanos funda a Revista ‘El Fogón’ para fazerem brilhar nela suas fagulhas poéticas. Isto não era um fato isolado. Depois da consagração do ‘Martín Fierro’, de José Hernández, que superou em qualidade e riqueza ao seu modelo ‘Los tres gauchos orientales’, de Lussich – ambos editados em 1872 – havia florescido em ambas as margens do Prata uma subliteratura gauchesca, forjada ao paladar de um ávido público consumidor. Esta produção, comumente de ínfima qualidade, arrastou, durante uns vinte anos, à decadência um gênero que nasceu como um testemunho e culminou como uma evocação. Os abortos teatrais brotados a esse amontoado inauguraram a luz dos holofotes do picadeiro circense um incessante pulular de dramalhões – puro talho, punhalada e chorar de chinas e nazarenas – que satisfaziam as exigências dos litorâneos nostálgicos do campo distante. Por seu lado, as produções poéticas – de algum modo tem de chamá-las – circularam de mão em mão muito mal impressos em livrinhos, folhetins e folhas soltas que eram lidas aos tropeços pelos leitores nas penumbras dos bolichos ou dos ranchos suburbanos e paupérrimos enquanto um auditório analfabeto procurava reconhecer, atrás dos afetamentos e deformações, o distante sistema de sinais de uma realidade afundada para sempre. Os agitados pelo êxodo rural, sobreviventes de uma sociedade que substituído a existência periférica do gaúcho pela igualmente marginal do povinho de ‘ratos’ ou a ‘vila-miséria’, se encontravam elegiacamente com um paraíso perdido, convertido em mito, habitada por uma turba de fantasmas melenudos que combatiam com a força prepotente e bêbada, representante do governo, aliada com os estancieiros e protegida pelos comerciantes e, por isso, sempre vencedora".
TOADA DE RONDA
A Cassio Annes Dias
Ronda mansa... Noite linda!
Bem baio-branco está o luar.
Rondando o segundo quarto,
Companheiros! vou cantar:
É lindo uma comitiva
quando se vai fazer tropa:
poncho e laço, galho atado,
chapéu batido na copa.
E a cavalhada por diante,
e os pingos barbeando o freio.
Charla a indiada estrada fora
inté o primeiro rodeio.
Fora boi!... Sta fora o boi!
boi brasino, que é bom pelo.
E, como corda de viola,
chega o brasino ao sinuelo.
Meu mourito Orelha-Curta
sabe como é que se faiz:
se o boi pula... pula junto,
não se apartam nunca mais.
Quebra boi... ai! quebra, quebra!
Bate aspa e casco – é uma piorra.
Quebra... quebra... ai! varre... varre!
que redemoinhe e não corra!
Nesse trechito o meu Zaino
à direita e esquerda calça.
Que rédea, amigos! o flete
parece que dança valsa.
Ôpa... Ôpa... Marcha... marcha!
E, na primeira porteira,
é só no mais... Talha... Talha!...
no meio da polvadeira.
Meu Pangaré-Malacara
– com a cavalhada na ponta –
se empina e atira e não pára:
quage me faiz errá a conta.
Venha... Venha... Venha boi!
Abro o peito nas estradas.
Venha boi... ai! venha... venha!
E a tropa marcha encordoada.
E eu chamo ao tranco do Alegre
– chapéu torto, pala ao vento,
mais hôme que um comandante
na frente de um Regimento.
Venha... venha... ai! venha boi!
Passo cheio ou povoação,
quando abro este peito velho,
a tropa é aquele cordão.
No meu tordilho Gadelha,
que é um peixe em que coube arreio,
largo tropa inté no mar,
tanto faiz baixo ou bem cheio!
Ai que boi... Ai! volta... Volta!
Deus do céu que escuridão!
Volta boi... (qual volta... Volta!)
troveja na escuridão!
Quando ela estoura na ronda,
sem medo o Pachola espicho!
que ele sabe onde hai buraco
pela catinga dos bichos.
Ah! uma quadrilha macota
é o galardão do tropeiro.
Sai dos pagos missioneiros
chega escarceando em Pelotas...
Embora simpático ao Partido Republicano Rio-Grandense, ao testemunhar o massacre de operários promovido pelo governo de Borges de Medeiros, marcam sua indignação contra toda e qualquer forma de ditadura, influenciando na concepção do romance póstumo “Memórias do Coronel Falcão”. Segundo os seus biógrafos esse massacre teria acontecido em 1920. Ao compulsarmos a história do movimento operário gaúcho concluímos que os fatos aludidos devem ser o massacre de trabalhadores, em Porto Alegre, durante a greve de 1919.
Em 1924 transfere-se para o Rio de Janeiro, onde cursará Medicina. Dois anos depois, retorna ao Rio Grande do Sul, participando da Revolução de 30 como capitão-médico. No ano seguinte conclui o curso de Medicina. Volta ao Rio de Janeiro, onde se especializa, com o professor Fernando Magalhães, em obstetrícia.
Fixa no interior do Estado. Em 1935 é convidado para assumir a chefia da III Cátedra Médica, na Faculdade de Porto Alegre, mas não aceita mudar-se para a capital. Em 1936 começa a escrever o romance “Memórias do Coronel Falcão”, que conclui em março do ano seguinte, mas que somente seria publicado em 1973.
Há uma história interessante envolvendo esse livro. Certa feira flagrou seu filho José Antonio lendo a obra. Indignado lançou os originais ao fogo, sendo salvos pela esposa Zilah. Mais tarde, alguns trechos queimados foram recuperados com o auxilio de amigos do poeta, especialmente Antero Marques.
Em 1937 assume a chefia do Posto de Higiene de Santiago, retornado a Porto Alegre no ano seguinte para casar com Zilah Lopes, com quem teve três filhos: José Antônio, Laura Maria e Nuno Renan. Em 1941, convidado pelo interventor estadual Cordeiro de Farias, assumiu a subchefia da Casa Civil, cargo que exerceu durante dois anos. Certo dia, ninguém sabe por que, abandonou tudo e retornou para Santiago. Ali, exerceu a clínica médica, enquanto a saúde lhe permitiu.
Em 1959 é publicado seu único livro em vida: “Romances de Estância e Querência – Marcas do Tempo”, pela Editora Globo. O filho José Antônio espera até que os primeiros exemplares estejam concluídos. Leva alguns exemplares a Santiago. O poeta está com câncer. Consegue apenas ditar à filha Laura Maria as dedicatórias e assiná-las. Falece no dia 22 de fevereiro daquele ano.
Embora Homem culto, leitor dos clássicos nacionais e estrangeiros, mistura os linguajares culto e popular com maestria.
A experiência de médico dedicado ao atendimento das camadas mais humildes da população foi fundamental para sua obra literária. As longas entrevistas mantidas com homens e mulheres pobres das fazendas e bairros de Santiago, somadas à vivência desde a infância com as atividades rurais, contribuíram para que o escritor dominasse a linguagem e a cultura dos gaúchos a pé e a cavalo.
É no romance “Memórias do Coronel Falcão” que esse livre trânsito entre os falares de homens estudados e não escolarizados é mais notável. Gustav Flaubert é apenas uma de suas influências. O autor de “Madame Bovary” serve-lhe de modelo para falar livremente sobre a sexualidade do gaúcho brasileiro, sexualidade que deveria conhecer muito bem, graças à condição de médico de aldeia. A grande influência é Euclides da Cunha, como se pode verificar mediante uma leitura atenda e meditada do romance. Como o autor de “Os Sertões”, mistura palavras eruditas, plebeísmos, arcaísmos e expressões científicas. Neste caso, através de explicações sobre fenômenos. Seguramente, beneficiou-se das críticas feitas aos aspectos formais da “Bíblia da Nacionalidade”.
Típico representante de uma geração que recuperou a obra de Simões Lopes Neto, a presença do autor dos “Contos Gauchescos” é outra constante em sua obra, como lembram os críticos. Ele mesmo foi um grande divulgador da obra literária do escritor pelotense.
“Memórias do Coronel Falcão” é o grande romance da política rio-grandense na primeira metade do Século XX. Conheceu a política estadual em suas mais altas esferas, como subchefe da Casa Civil do interventor Cordeiro de Farias, entre 1941 e 1943. Não aceitou concorrer a deputado, retornando a Santiago. E a política municipal, seguramente, conhecia muito bem. Seu livro é um retrato do autoritarismo e da corrupção. Disseca o caciquismo e a gingolagem dos dirigentes partidários a nível municipal.
A corrupção é tal que chega aos presídios. As loucas e os meninos de rua, os que jogavam pedras nas casas, roubavam frutas ou faziam algazarra, eram soltos nas celas, para diversão dos presidiários. Impostos, os companheiros de partido não pagavam.
Conhecedor profundo dos clássicos brasileiros e universais, Aureliano de Figueiredo Pinto não gostava que lhe chamassem publicamente. Luiz Sérgio Metz acredita que isso se devesse ao elevado senso crítico do autor, que conhecia profundamente os clássicos brasileiros e universais. Em 1936 já dispunha de três cadernos com poemas. Exatas duas décadas depois, inicia uma seleção, que resultará no livro “Romances de Estância e Querência – Marcas do Tempo” (Editora Globo, Porto Alegre, 1959). Poucos dias antes de falecer, em 22 de fevereiro, recebeu dez exemplares do livro, que dedicou a amigos. Ditou a dedicatória à filha, pois mal pode assinar. Em 1963, é editado, “ad sodalibus”, o segundo livro de poemas “Romances de Estância e Querência – Armonial de Estância e Outros Poemas” (Livraria Sulina, Porto Alegre).
Em 1973, a Editora Movimento, de Porto Alegre, deu a lume a primeira edição do romance “Memórias do Coronel Falcão”, que é reeditado no ano seguinte. A edição definitiva, terceira, sai pela mesma editora em 1986, cuidadosamente revista por Antero Marques, Plínio de Figueiredo Pinto, seu irmão, e Romeu Beltrão, seu amigo, “que leu nada menos de quatro vezes a segunda edição da obra de A. de F. Pinto”. Em 1998, a mesma editora entregava ao público “Itinerário – Poemas de Cada Instante”, poemas líricos, dedicados a uma mulher, cujo nome o próprio autor rasurara, desejando que o nome fosse conhecido, mas não revelado.
A exemplo dos grandes criadores literários, os críticos se dividem ao analisar a obra de Aureliano de Figueiredo Pinto. Razão cabe a Helena Tornquist: “Num balanço final do legado desse escritor que teve a secreta intenção de estar escrevendo para as futuras gerações, deve-se salientar que uma certeza o movia: os tempos mudavam e era preciso preservar a memória do Rio Grande Agrário que se transformava. E nisto sai obra se manteve coerente: desde o primeiro poema que, nunca se afastou do propósito registrado em carta de 1936: o de fixar flagrantes e imagens de seres e instantes do meio rio-grandense”.
O que o crítico Carlos Jorge Appel, editor de “Memórias do Coronel Falcão”, afirma desse livro, se aplica a todo o restante da obra do Autor: “Se Aureliano de Figueiredo Pinto não conseguiu ressonância, foi simplesmente por não haver publicado seu romance no devido tempo”.
A partir de 1975 os poemas de Aureliano conseguiram divulgação ímpar. Noel Guarany, conhecido compositor e intérprete regionalista, conseguiu autorização da família para musicar “Bisneto de Farroupilha” e “Canto do Guri Campeiro”, que fazem parte de “Romances de Estância e Querência”, o mais gauchesco dos seus livros de poemas.
“Bisneto de Farroupilha” é um dos mais belos poemas que já se escreveu no solo rio-grandense. Nele encontramos todas as características que desse gênero ou subgênero poético: a personalidade forte, marcadamente individual, do homem da campanha, a profunda solidariedade humana, a independência diante do Estado, a bravura individual, que se materializam num quase anarquismo, oposto à modernização capitalista que a tudo transforma em mercadoria.
BISNETO DE FARROUPILHA
Pobre... Mas livre! Gauchito
no sol-a-sol, sou o que sou.
Pois nem dom Pedro Segundo
não pode – o senhor de um mundo!
dobrar o meu bisavô.
Com esta alma guapa nos tentos
debaixo do meu sombreiro,
pelo Poder e o Dinheiro
nunca ninguém me levou.
Pois nem o taura Castilhos,
famoso pelos codilhos,
pode voltear meu avô.
E ao tranco do meu Lobuno,
passam por mim carros finos,
com espertos e ladinos
que a escovação empilchou.
Sigo... Às vez’ sem nenhum cobre,
sem que a secura me dobre!
– Se meu Velho está índio pobre,
porque a ninguém se dobrou.
Conterrianos, moços lindos,
com humildades de escola,
curvam a espinha de mola,
no culto de um ditador,
seja qualquer que ele for!
– Com a fumaça de um bom fumo,
chapéu torto, corto o rumo,
ao tranco do meu Lobuno,
sem dar louvado a um senhor.
Deus velho dá o sol também
ao que sabe ser torena
e não suporta cadena
de feiticeiro ou papão.
Não me enredo nessas trampas!
E vou cruzando estes Pampas,
só escravo do coração...
.........................
AMGOS!... Quando eu me for
ao país do eterno olvido,
aqui fica este pedido
antes que a Morte comande!
– Ponham-me ao peito sem chucho
o santo trapo gaúcho
da tricolor do Rio Grande!
Quando escrevo este artigo recebo a notícia de que um grande e querido amigo, jovem de 36 anos, com o qual muitas vezes discuti sobre a história e a cultura do Rio Grande enforcou-se. Foi um dos mais brilhantes estudiosos da história passo-fundense. Lembro-me de um poema de Aureliano. E é em homenagem póstuma àquele amigo que muito colaborou para a publicação de meu livro “Combates da Revolução Federalista em Passo Fundo”, que transcrevo o belo poema, que faz parte de “Romances de Estância e Querência – Marcas do Tempo”.
RELATO DO ENFORCADO
Tudo lhe vinha ao contrário.
Nadava contra a corrente.
Tudo o empurrava pra trás.
Tudo o fazia afundar.
Às vezes desacorçoava,
mas renascia a coragem.
E já agora, ultimamente,
o mundo demoronava.
O mundo não era mundo
era uma coisa enjoativa
que se suporta por vício.
Era um quarto de lua nova
e o vento norte ventava.
Vinha uma poeira nos olhos
de sair água por nada.
Uma palavra qualquer
sentiu que a fundo o feria.
Agarrou mais fumo e palhas,
e, com um cabresto na mão,
ao mato se encaminhou:
– “ buscar um pouco de lenha...”
Olhou o angico mais alto,
com um galho para o perau.
Namorava o galho alto,
como se olhasse um sobrado
que desejasse comprar.
Ia cortando mais fumo
e mais cigarro enrolando,
largando cada tragada
de fumaceira gostosa,
das de fazer cerração.
Pensava que o mundo velho
já era um baile acabado
sem razão pra se ficar.
Namorava o galho alto,
como avaliando um sobrado
que pretendesse comprar.
Fechou um crioulo bem grande,
que botou atrás da orelha,
e foi subindo no angico
com jeitos de gato bravo.
Montou no galho bem alto,
que dava para o perau.
Amarrou nele o cabresto,
pôs laçada no pescoço,
com o chapéu bem tapeado,
bem preso no barbicacho.
Acendeu o crioulão
e largou a fumaçada,
das de fazer cerração...
Com o chapéu bem tapeado,
bem preso no barbicacho,
cerrou nos queixos o crioulo,
e resvalou-se com jeito,
para ser estrangulado.
Quando veio o delegado,
mais o escrivão e o doutor,
balançava no perau,
como se o vento o rodasse
na dança sobre os abismos.
Firme o cigarro nos queixos,
e o chapéu velho, maroto,
quebrado como em fandango.
E no rápido velório,
que corajudo haveria,
nem por Deus nem pela Virgem,
de contrariar o finado:
– querer tirar-lhe o cigarro,
querer sacar-lhe o sombreiro.
E entocou-se cova a dentro
com jeitão de malcriado:
– cigarrão preso nos queixos,
chapéu velho bem quebrado.
E a borla do barbicacho
– única flor sobre o peito...
“Romances de Estância e Querência II – Armonial de Estância e Outros Poemas” é a primeira obra póstuma do Autor. Apesar de, segundo os críticos, não ter sido organizado pelo poeta, ao contrário do que os críticos pensam, mantém, sim, uma unidade literária. Se, na primeira obra, o lirismo e o telurismo regionalistas eram maiores, aqui, destaca-se o tom épico. À exceção dos pequenos poemas que compõe a parte intitulada “DE NOITE AO TRANQUITO”, continuação do livro anterior, Aureliano traça a história do Rio Grande do Sul em versos, como no poema “OS FARRAPOS”, em que canta a Revolução Farroupilha (1835-1845).
VII
OS FARRAPOS
Sofre o Rio Grande a amputação, surpreso!
Psíquica dor no inexistente membro
irrita a gauchada atenta e alerta
que explode, enfim, na rebeldia aberta
da jornada do 20 de setembro.
Era o sonho: – a República no Império
do Prata ao Norte em confederação.
Eis o ideal por que os próceres se movem:
– vir à Banda Oriental, sendo a mais jovem
fúlgida estrela da constelação.
Falhou o sonho... E aos Generais e aos moços
só resta ir desfraldando e abrindo cancha
apodados de pobres farroupilhas,
por dez anos, por pampas e coxilhas,
a legendária tricolor sem mancha.
Tricolor! Sobre o olvido e sobre as chamas
guardas a eternidade das medalhas.
Nas cores do Brasil a componente
que te impôs o destino desta gente:
– fulgor de sangue sobre cem batalhas!
E ao lado do auriverde pavilhão
que drapejava aos minuanos e nas auras,
tens a unção dos vitrais e das estampas.
– Nossa Senhora emocional dos Pampas
transfigurando os corações dos tauras!
Ah! Trinta e Cinco... aqui estagiou Portinho
num vasto acampamento migratório.
E a Boca-do-Monte, guarda o posto,
cortando campos de janeiro a agosto,
vinham guerrilhas do tenente Osório.
E João Antônio e Canabarro, bravos,
na Cordilheira bruta abrindo o trilho,
aqui chegaram da fronteira guapa
por darem glória à tricolor farrapa
na alvorada de outubro, no Espinilho.
Farrapos e legais nessa mangueira,
às vezes uns, logo mais tarde os outros,
volteavam tumultuosas bagualadas.
E estagiavam em largas churrasqueadas
polindo as armas e domando os potros.
Lá naquela coxilha está Crescêncio,
morto nessa famosa retirada
da capital para a fronteira... E, atento,
fico pensando como o grande Bento
por honra e idéia flamejava a espada!
Bento Gonçalves!... Lidador excelso!
Republicano sem Cesário estigma,
que o infortúnio e as masmorras não consomem!
– O Sol e a argila dos rincões num Homem
com as virtudes totais de um paradigma.
Por seu ideal – livre do cetro a Pátria.
Chefe opulento e grã-senhor, concita!
E saúde, bravura, mocidade, fortuna
– esbanja pela liberdade
e morre pobre como um eremita!
Bento Gonçalves! Singular figura
em seu tempo e em seu meio! E sempre os hinos
terá do Pampa que lhe ardeu no peito.
– Verde moldura do perfil perfeito
do mais escultural dos paladinos.
Panteon soberbo do Rio Grande! Ainda
avultam todos com perfil tristonho
na gravura imortal de alta memória.
E encherão de esplendor a História
as labaredas de seu grande sonho.
A paz de Ponche Verde... à tarde e ao tranco
aqui chegou, com baixa da Coluna,
para capatazear, um campeiraço!
– O moço alferes que perdera um braço
junto de Garibaldi, na Laguna...
Aureliano de Figueiredo Pinto, ao reproduzir em estilo épico a História do Rio Grande do Sul, segue a historiografia tradicional, de cunho positivista. A não romper (pelo menos de todo) com a filosofia positivista sua obra, historicamente, é limitada. Chega no máximo a um reformismo político. Não é à toa que os estudiosos das idéias políticas ligam o populismo, seja o trabalhismo brasileiro, seja o justicialismo argentino, a influência exercita pelas idéias de August Comt.
Daniel Vidalt, em 1968, escreveu: “hoje o gauchismo, o nativismo e outras tendências afins buscam, para perdurar, novos veículos de comunicação poética. Não se animam a andar somente apoiados na palavra em meio deste vento que sobra de baixo, dos cimentos mesmos da América. A Revolução Cubana, o subdesenvolvimento como realidade e consciência, a luta antiimperialista dos povos, nos retroagem à época de Hidalgo: o poeta se transmuta então em cantor e dialoga, viola na mão e música na boca, com um auditório que reclama uma proclamação oral, direta, militante, revolucionária”.
Aureliano de Figueiredo Pinto antecipa o período retratado por Daniel Vidart. Jamais foi um revolucionário. Possivelmente, jamais o seria. Seus poemas de cunho social, como de resto várias passagens de “Memórias do Coronel Falcão”, estão cheios de conceitos revisionistas. Em “CANÇÃO DO MARGINAL” ecoam os pensamentos reformistas, que ressoariam, algum tempo depois, nos discursos do maior teórico trabalhista, Alberto Pasqualini. É um discurso ainda mais duro. Ao misturar uma prática de então, o contrabando e falsificação de pneus brasileiros, que através da Argentina, chegavam às forças nazistas.
O contrabando e a falsificação de pneus fizeram a fortuna de muitas, tradicionais e respeitáveis famílias. Por isso, até hoje, é verdadeiro tabu. Para o pobre não havia lugar nem mesmo entre os criminosos que lhe negavam um trabalho honesto. Até mesmo a desonestidade é apropriada pelos poderosos.
À época, a palavra marginal não tinha o sentido atual, de elementos criminosos, que vive à margem da Lei. Entendia-se como marginal o pobre, o proletário, o sem-terras, o descamisado, aquele que vivia à margem da Economia. Assim, como todo o poema social, é datado.
CANÇÃO DO MARGINAL
Foi legionário da coluna invicta!
Bravo, bateu-se com orgulho nobre.
Hoje, em 44, é um trapo humano.
E ouve, na angústia do seu desengano
“... não há va...gas!” Pobre...
Voluntário de 30 e 32
sonhando a Pátria que o ideal descobre,
marchou, com honra, pelejou com brilho.
E hoje, este melancólico estribilho:
“... não há va...gas!” Pobre...
Hoje, magro de dívidas e fome,
a princípio a tragédia mal encobre.
Mas, afinal também quer ter sossego.
E eis a resposta à súplica de emprego:
“... não há va...gas!” Pobre...
Pobre! Cansado de esperar promessas
na esperança de que a sorte se lhe dobre,
pede um posto, um lugar, modesto cargo.
E ouve ferino este refrão amargo:
“... não há va...gas!” Pobre...
Triste! A miséria, os filhos em andrajos,
tudo lhe soa com suturno dobre.
Pede um lugar ao sol para o trabalho.
E a resposta é mais dura do que um ralho:
“... não há va...gas!” Pobre...
Doente! O peito lhe arqueja num cansaço.
Não há tranqüilidade que lhe sobre.
Algo mendiga que permita um prato.
Como resposta o estúpido e gaiato:
“... não há va...gas!” Pobre...
Cansa! E se lembra dos pneus rendosos!
Talvez no contrabando não sossobre
tendo agasalho e pão para a família.
Grita-lhe a opulentíssima quadrilha:
“... Não há va...gas!” Pobre...
Em "Romances de Estância e Querência II – Armonial de Estância e Outros Poemas”, encontramos ao final da obra, alguns poemas que são verdadeiros testamentos do poeta.
O MEU CRISITANISMO
Às minhas patrícias
É a velha, humana, repetida história:
depois de um doloroso dia-a-dia,
resta a cinza das flamas da energia
e o gosto amargo da existência inglória.
Sob a soalheira, ou pela noite fria,
seguindo a estrela esplendida e ilusória,
teci o mais alto bem na alheia glória
sem mesmo perguntar porque fazia.
Vêm depois os crepúsculos caindo.
Faço a minha colheita na amargura
das pobres searas do meu sonho lindo.
E no pudor da mágua sem alarde,
espero o olhar de Deus baixar da altura
na última luz do sol da minha tarde...
Num outro soneto, espécie de complemento daquele que transcrevo acima, há um canto de gratidão a Deus. Vê-se a limitação que o médico entendia no seu trabalho, lembrando às vezes em que intercedera em espírito de oração pela saúde dos filhos.
ESTOU GRATO, SENHOR
Quanta vez, coração feito em pedaços
com filhos – presas de tremenda doença,
eu Te pedi, Senhor! Na angústia intensa,
com voz do pensamento nos espaços:
– Todo infortúnio, toda grave ofensa
afasta dos caminhos e dos passos
da criança enferma que hoje trago aos braços
e caia sobre mim tua sentença.
Estou grato, Senhor! Pelo que passa:
a mim os males que fatais pressinto,
a eles as luzes da Divina Graça.
Estou grato, Senhor! Sombras se adensam
na minha tarde. E que feliz me sinto
se aos filhos deste as tuas grandes bênçãos.
E “Romances de Estância e Querência II – Armonial de Estância e outros poemas” encerra-se com este soneto magistal:
ÚLTIMA PÁGINA
Vida que vai ficando... A encantada paisagem
e os entes que se amou. E as cousas que se quis.
Gestos de amigos leais. Femininos perfis
que deixaram num verso a enternecida imagem.
Dura viagem da vida... A romanceada viagem.
De instante a instante. Aqui e além. Triste ou feliz.
Com inscrições de bronze e legendas de giz
no roteiro incolor da efêmera passagem.
Certos dias que estão embalsamados na memória.
Certas noites de luar. E as dardes de aquarelas.
E esses vitrais de acaso. E tanta íntima história.
E vamos indo... Até – sem um rictus na face –
à hora convencional das irônicas velas
e o tremendo latim do – Requiescat in pace...
Carlos Jorge Appel, editor e crítico literário, na Introdução que escreveu para “Itinerário – Poemas de Cada Instante”, conta que a obra de Aureliano de Figueiredo Pinto proporcionou-lhes duas surpresas. A primeira delas o romance “Memórias do Coronel Falcão”.
“A segunda surpresa nos chegou às mãos, de novo, através de José Antônio de Figueiredo Pinto, sempre preocupado com a obra do pai, em dezembro de 1996: os poemas inéditos contidos num único caderno, com o título de Itinerário – poemas de cada instante. Ao me passar os originais manuscritos, com letra, em geral, clara e inteligível, José Antônio observou: “a página inicial está rasurada ao meio. Foi intencional. Deveria estar aí uma dedicatória que meu pai não quis que aparecesse. Mas a gente sabe a quem a dedicatória foi feita”.
(...)
“A natureza exterior, a campanha, os costumes, o modo de vida do gaúcho com seus avatares e linguagem própria compõe a matéria-prima de Romances de estância e querência – Marcas do tempo e do seu segundo livro, publicado após a sua morte, Armonial de estância e outros poemas.
Em Itinerário, o dia-a-dia da campanha cede lugar ao mundo interior, onde os temas são a transitoriedade do amor, a paixão, a perda da mulher amada, a desolação, a morte, os limites do ser humano. A linguagem acompanha a universalização dos temas e alcança uma dimensão clássica, ou seja, aquela dimensão que está para além de todos os modismos e circunstâncias e que expressam o essencial do homem de todos os tempos”.
De fato, como reconhece o editor e revisor de duas das obras de Aureliano, perpassa em todo esse pequeno grande livro, um lirismo de sabor clássico. Muitos poemas lembram Fernando Pessoa e seus heterônimos. Em tantos deles há algo lembrando Alberto Caeiro. E é exatamente isso que confere a “dimensão clássica” destacada por Jorge Carlos Appel, a começar pelo soneto que abre a coletânea.
EX-LIBRES
Vida integral. Total. Princípio e fim!
Amo-te até no mal que me lacera.
E, a cada novo instante que me espera:
– Vida! Me exalto por viver-te assim!
A alma fulgura. O sangue reverbera.
E aos dardejantes sóis, no torvelim,
sinto que vibram séculos em mim,
nas soalheiras de cada primavera.
No meu dia de doida claridade
as corolas e os ninhos – soluçantes
fremem nos ritos da perpetuidade.
Quando eu rolar para o meu chão profundo,
algo de mim perpetuará os instantes
com que a mim mesmo me esbanjei no mundo...
Nesse soneto, em que apresenta os demais poemas, há mais do que lirismo, há reflexão lírica, o que, de certo modo, será uma constante em Itinerário. Aqui se vê a “dimensão clássica”, em toda a sua extensão, como “Vida integral”. E vida integral é a união entre o interior do “Amo-te até no mal que me lacera”, pela exaltação desse amor, a fulguração da alma, a reverberação do sangue, o dardejar dos sós, a vibração dos séculos nas soalheiras primaveris. Tudo isso indo acabar no “chão profundo” de cada ser humano.
Essa fusão de elementos interiores e exteriores somente pode processar-se através da racionalidade, que somente pode ser a mediação lírica ou o lirismo reflexivo. O que caracteriza o clássico, mas o clássico mesmo, no sentido de retorno à ancestralidade grega, é a união entre razão e sentimento.
Os gregos do período áureo, ao separarem razão e sentimento, causaram um grande mal à Humanidade. Ocorreu a separação entre o homo sapiens e o homo demens, revelando os complexus, aquilo que é tecido em conjunto, na melhor definição grega, segundo vemos em “Amor Poesia Sabedoria”, de Edgar Morin. Aureliano de Figueiredo Pinto, em Itinerário, reúne o que a racionalidade separou, reconstitui o homo sapeins/demens, a “vida integral”, o homem integral. E isso apenas é possível porque nele o homo sapiens, representado pelo médico, está a serviço do homo demens, o poeta.
A integralidade humana envolve a ligação do homo sapiens/demens com a Natura. Aí a análise de Jorge Carlos Appel é limitada quanto à poética de Aureliano. A natureza da campanha e o modo de vida do gaúcho estão presentes, sim. Vemo-los através da história, representada pela vibração dos séculos, que plasmaram o modo de vida do gaúcho, e do meio, materializado pela soalheira primaveril, que temperou o homem do campo rio-grandense.
Veja-se, a seguir, outro dos tantos sonetos de Itinerário onde é plena a integralidade entre homo sapiens/demens e Natura:
XIII
A água que eu bebo tem o gosto do teu beijo;
a manhã lembra a luz pagã do teu sorriso.
Sugere a névoa o vago olhar, longe, impreciso,
de quando aplacas, fina e langue, o teu desejo.
A asa que passa, no céu alto, em vôo andejo,
lembra o teu gesto arisco em sutil sobreaviso.
E, na árvore alta e fina, e na flor do paraíso,
tendo-te toda em mim, sempre em tudo te vejo.
Bruna e pálida, alta e trêmula, os cabelos
cheios da escuridão das noites em que amamos!
– Sinto-te no meu sangue em tumultos e apelos.
Em tua leve silhueta o mundo se resume.
E quando, sem encontrar-nos, nos buscamos,
ruge em minha alma em sombra a alma do teu perfume.
A gauchesca, o nativismo, a canção de protesto, o lirismo de recorte clássico, que fazem lembrar “o gauchismo cósmico” de um Fernán Silva Valdés ou de um Pedro Leandro Ipuche, estão presentes na obra poética de Aureliano de Figueiredo Pinto. Poeta culto, usa a profissão de médico para apropriar-se da alma gaúcha, resumindo a evolução estética da poesia popular de raízes regionalistas, a gauchesca. E isso o transforma no mais representativo poeta gauchesco, nativista ou de “outras tendências afins” de língua portuguesa de todos os tempos.
Aureliano de Figueiredo Pinto jamais teve a preocupação de dar ampla publicidade a sua obra. A política, seja partidária ou literária, eram-lhe quase que indiferentes. Possuía uma acurada consciência da durabilidade de sua obra, como vemos neste trecho, dele mesmo, com que Helena Tornquist encerra a biografia que dedicou ao escritor: “A nossa vida, na renúncia de sua modéstia tem algo a dizer à mocidade de amanhã, porque foi vivida à nossa maneira, ao jeito do fio d’água que corre à margem da barulhenta cascata que é a opinião-do-Senhor-todo-Mundo”.
Bibliografia:
APPEL, Carlos Jorge. “Memórias do Coronel Falcão”. Apresentação, In: PINTO, Aureliano de Figueiredo. “Romances de Estância e Querência – Marcas do Tempo” (Primeira Edição). Porto Alegre, Editora Globo, 1959.
APPEL, Carlos Jorge. “ITINERÁRIO – Poesia inédita de Aureliano de Figueiredo Pinto”. In: PINTO, Aureliano de Figueiredo. “Itinerário – Poemas de Cada Instante”. Porto Alegre, Editora Movimento, 1998.
PINTO, Aureliano de Figueiredo. Memórias do Coronel Falcão. Porto Alegre, Movimento, 1974, p. 5-17.
GARCIA, Serafin J. “10 Poetas Gauchescos del Uruguay”. Montevideo, Libreria Blundi, 1963.
METZ, Luiz Sérgio. “Aureliano de Figueiredo Pinto”. Porto Alegre, Tchê! Editora Ltda./RBS, Porto Alegre, 1986.
MORIN, Edgar. “Amor Poesia Sabedoria”. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 2002.
PINTO, Aureliano de Figueiredo. “Romances de Estância e Querência – Armonial de Estância e Outros Poemas” (Primeira Edição). Porto Alegre, Livraria Sulina, 1963.
PINTO, Aureliano de Figueiredo. “Memórias do Coronel Falcão” (Terceira Edição). Porto Alegre, Editora Movimento, 1986.
PINTO, Aureliano de Figueiredo, “Itinerário – Poemas de Cada Instante”. Porto Alegre, Editora Movimento, 1998.
TORNQUIST, Helena. “Aureliano de Figueiredo Pinto”. Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1989.
VIDART, Daniel. “Poesía y campo: del nativismo a la protesta”. Capítulo Oriental 23. Modevideo, Centro Editor de America Latina, 1968.
poeta brasileiro da geração do mimeógrafo pertence a diversas entidades culturais do brasil e do exterior estudioso de história é autor de centenas de artigos e ensaios sobre temas culturais literários e históricos