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CARTAS DE MALQUERER 1

 
Sei que já te disse adeus tantas vezes e outras tantas me despedi ao ver-te partir como os que partem e deixam uma pétala da rosa da roseira das saudades espalhada sobre a colcha da fria cama. Sei que tantas vezes suspirei que não viesses apelando a uma clemência inexistente no livro das crenças apenas para não sentir a dor de te ver partir e ficar a sós comigo sobre o lençol molhado do suor de nós.
Sempre que o telefone tocava e a tua voz me surpreendia tão meiga e quente como o verão mais ardente do vulcão do nosso querer o meu coração saltava de contente e eu que tanto desejara a tua partida ansiava agora como um louco a tua chegada. A janela já não tinha postigos para abrir de tanta ansiedade nem a porta ombreira onde bater. Escancarava a casa como quem rompe o biombo das nuvens com as mãos e deixa uma nesga de sol invadir a sensualidade de uma mistura de tudo o que se desenvolve em nós e faz almejar por algo surpreendente que nos faria perder no cubículo florido da paixão.
Breves minutos – porque a nossa história é feita de fugazes minutos – como as páginas brancas de um meticuloso jasmim ainda não inventado narram a aventura daquele apólogo que ainda não foi escrito e acredito tenha fim. O princípio é sempre o retorno do filho pródigo como ave de arribação às labaredas incandescentes dos meus braços ao braseiro incendiado dos meus beijos à fogueira em combustão da minha carne à lareira do nosso leito. Breves momentos antes da partida sentava-me sobre os ponteiros do relógio a contar os séculos – aqueles que passarão sem que te veja – tentava num fôlego atrasá-lo ficando com a estranha noção de que apenas adiava a tua permanência e o tempo que sobrava era a solidão.
Digo adeus e prometo amar-te desprendido e solto como um animal feroz que caminha pela selva numa atitude pretensiosa de querer ter a manha do leopardo a agilidade da gazela a beleza da zebra e a pujança do leão apenas para que em mim sintas a tua casa e o sol bafeje de astros o olhar. Digo adeus porque não aprendi a dizer mais nada enquanto espero no anfiteatro do sono pela vontade de querer que fiques e que nunca mais partas. Digo adeus para que possa manifestar a enorme alegria do regresso.
Se a lua ousar defrontar-me com os seus divinos braços de seda e o vento ao bulir ultrajar de sopros o jardim da felicidade entregarei o peito à noite como um guerrilheiro medieval enfrentarei os insectos com a precisão dos pássaros armado com a lança de um raio de sol e o escudo das ondas. Como um garimpeiro percorrerei o arco-íris até encontrar o pote de ouro da harmonia como o epicentro de todas as pontes que atravessam de sorrisos os rios agitados das consciências voláteis como anseios. No alforge de prata a insígnia de um abraço abrirá alas pelo universo e instalar-se-á numa artéria qualquer onde o sangue é o mensageiro de um telegrama que fala apenas de nós.
Conselhos apanho-os na erva que nasce pelos campos com o alecrim quando as árvores abrem alas e o caudal de um regato de cetim leva na enxurrada as muitas compreensões blasfemadas que predizem que te amo como a seiva se derrama pelo caule das flores e nunca mais voltarás ao terraço do meu furioso e insatisfeito querer. Um estático sorriso profetisa uma sementeira de dores e nomes onde o teu consta mesclado de essências tão rudes como o enxofre. Acredito somente no karma planetário que me revela na bola de cristal da sabedoria dos tempos que o teu regresso é apenas a consequência das flores que disponho sobre a mesa-de-cabeceira e que o teu desejo de ficar é a causa natural de um bem-estar que a fusão dos desejos proporciona porque tens um nome e é o único que a minha garganta sedenta e aflita reproduz como uma ladainha.
Amanhã é possível que as vozes do globo se unam para me dizerem que estás aqui porque sei sempre que estás comigo assim como sei que estou contigo e acredito que sempre estarás… só não sei onde estás.

antóniocasado
Inserido no projecto "Escrito ao Luar"
6 Abril 2009



 
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antóniocasado
 
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Enviado por Tópico
Beto
Publicado: 22/12/2009 20:11  Atualizado: 22/12/2009 20:12
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Usuário desde: 15/12/2009
Localidade: Suzano.SP
Mensagens: 23
 Re: CARTAS DE MALQUERER 1
Tua carta me leva a refletir sobre a solidão... Este sentimento que amargura, entristece e até devora... No entanto, fiquei a pensar se a saudade é oriunda dela... Talvez em alguns casos sim... No entanto, penso que a saudade não é só triste... Existe a saudade que nos alegra o coração...Percebi que gosta de comentar meus escritos gostaria de lhe passar um site que eu gosto muito de postar lá se tiver interesse espero que coloque seus textos lá também..http://www.worldartfriends.com.. Não sei se o conhece se num conhecer entra lá se gostar faz uma conta..Abraços amigo antónio..


Enviado por Tópico
eduardas
Publicado: 22/12/2009 21:03  Atualizado: 22/12/2009 21:03
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Mensagens: 3731
 Re: CARTAS DE MALQUERER 1
António,

Mais outro momento que escapam as palavras. Amor e solidão parecem unir-se num qualquer jardim onde nascem os malmequeres e as ervas daninhas.

E mais uma vez...Parabéns!

Eduarda


Enviado por Tópico
jomasipe
Publicado: 22/12/2009 21:11  Atualizado: 22/12/2009 21:11
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 Re: CARTAS DE MALQUERER 1 p/ António Casado
Belíssimo na expressão sentimental este teu poema,
só para dizer que gostei muito,
abraço,
JS


Enviado por Tópico
gil de olive
Publicado: 23/12/2009 00:01  Atualizado: 23/12/2009 00:01
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Localidade: Campos do Jordão SP BR
Mensagens: 4838
 Re: CARTAS DE MALQUERER 1
Li varios de seus textos,nao encontrei um sequer que poderia classificar como razoavel, todos de otima qualidade, bem montados, bem feitinhos e escritos com carinho!Tipo de textos que da gosto ler!Desejo ao meu bom amigo, e tambem aos seus, um FEliz Ntal e um venturoso Ano Novo!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/12/2009 00:14  Atualizado: 23/12/2009 00:14
 Re: CARTAS DE MALQUERER 1
António,
Não é vão que procuro o teu nome para ler-te.
Escreves divinalmente os teus sentimentos de solidão e amor!
Em cada palavra, projectava-se em mim, a ânsia de ler a próxima frase.

Espero que tenhas mais narrativas como esta que acabei de ler!

Parabéns, amigo.

Bj.


Enviado por Tópico
Conceição Bernardino
Publicado: 23/12/2009 02:09  Atualizado: 23/12/2009 02:09
Usuário desde: 22/08/2009
Localidade: Porto
Mensagens: 3357
 Re: CARTAS DE MALQUERER 1
Feliz Natal e um ano de 2010 cheio de paz e saude.

beijo

MG


Enviado por Tópico
Julio Saraiva
Publicado: 23/12/2009 02:15  Atualizado: 23/12/2009 02:15
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Localidade: São Paulo- Brasil
Mensagens: 4206
 Re: CARTAS DE MALQUERER 1p/antónio casado
leio seu poema, meu irmão poeta, já se faz madrugada no brasil. perdoa-me, não chamá-lo carta. é um poema. e escrito como quem tira palavras do fundo da angústia, assim como um mágico o faz com os seus coelhos da cartola. leio e o releio muitas vezes. por isso o chamo elegia a um amor machucado - ou morte, o que a elegia, por si só,já diz. brilhante.
abraço.

j.


Enviado por Tópico
Esther
Publicado: 23/12/2009 16:58  Atualizado: 23/12/2009 16:58
Da casa!
Usuário desde: 17/12/2008
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Mensagens: 346
 Re: CARTAS DE MALQUERER 1
Caro poeta...Antônio bem-casado? De onde tiras tão doces palavras? Que fluência...que poetar! Parabéns!
Desejo-te todo o bem do mundo, um ano cheio de coisas novas e boas, porém, o que será de nós poetas, se não sentirmos a dor das perdas?
Um abraço poético e o meu agradecimento por tuas visitas e comentários pertinentes.

Att.