Prosas Poéticas : 

Sangro a Dor

 
(enquanto leio Saramago)

"Se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse e despenteasse os cabelos"

Estou acordada à mais de duas horas, sinto no peito a rebentar uma dor maior que me fecha os poros da pele e quase me sufoca a garganta, levanto-me devagar, perco o norte, agarro-me à cabeça e começo a caminhar até à casa de banho. Dói-me o sangue nas veias, corre em alvoroço, sinto as mãos tremerem-me e a cabeça latejar, pego na lâmina e corto-me pela primeira vez, corto-me a pele do braço esquerdo, antes despido agora vestido de sangue, vermelho tão vivo como é viva a tristeza que o enaltece. Arrastando os pés vou até ao quarto sangrando, vejo o sangue correr-me pelo braço e deixo-o correr, gosto de ver assim o meu sangue a sair-me do corpo, sentir a dor a aliviar. Tapo as ferias com uma ligadura e deito-me de novo, amanhã é um novo dia.

"se ao menos esta dor visse
se ela saltasse fora da garganta
como um grito
caísse da janela fizesse barulho
morresse"

Está calor, o sol rasga a janela e poisa nas minhas pestanas, acordo devagar, no calor da manhã adormeço as lembranças que não tenho, a recordação do que foi e não quero lembrar, visto uma camisola de manga comprida para tapar a ligadura, não quero que ninguém veja. Encosto a cabeça ao espelho da casa de banho e deixo-me chorar baixinho, queria gritar mas o silêncio da casa, as paredes mudas, fazem-me cair no chão encostada ao lavatório, agarro os joelhos e choro até a minha mãe me chamar para o pequeno almoço.

"se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir saliva fora
sujar a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre e tem o direito de não sofrer "

De face lavada desponto-lhe um sorriso e sento-me na mesa, não tenho fome, não quero comer nada, a minha mãe prepara-me o pequeno-almoço e vai para o quarto mudar-se de roupa, enquanto isso despejo o café na banca da louça e deito o pão ao lixo, levanto-me e pegando na mochila já despeço-me da casa.
Entro no autocarro, os amigos que não tenho conversam e riem, eu sento-me a um canto no fundo do autocarro e deixo-me ficar, vejo a paisagem passar à minha frente à velocidade estonteante de um ou dois pestanejares, pestanejo tudo e muito e deixo-me ficar. Já todos saíram do autocarro e eu ainda aqui estou, à quem me julgue anormal, às vezes chamam-me maluca, gosto apenas de ver o autocarro vazio como a minha alma e chorar um pouco sem ninguém ver.

"se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas
se menos essa dor sangrasse..."

As aulas da manhã não foram grande coisa, no intervalo ainda tive tempo de fazer mais um corte no meu braço, dói agora, arde-me tanto mas nunca conseguirei comparar esta dor que sinto agora à dor que reina na minha alma e me quebra a verdade, me destrói a firmeza e me deixa assim tão frágil. Quando me corto a vida passa sobre mim em forma de imagens, de gritos, de odores, de receios e medos, quando me corto não há quem me ajude e o silêncio mouco das palavras mudas que me não dizem fazem com que me apeteça cada vez mais cortar-me e esconder-me destes que me não entendem.
Curvada sobre o rio penso a vida, destapo as feridas e enquanto as vejo choro, este desejo imenso de não as ter feito sempre menor ao desejo absurdo de as ter sempre. Repenso a vida que deixou de fazer sentido, não entendo porquê, isso é importante? É importante eu entender? Apenas sei que sofro, que me dói tanto, que me é impossível calar este sofrimento por mais que tente.





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. façam de conta que eu não estive cá .

 
Autor
Margarete
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