- O pai era menos religioso. – disse eu. – A avó não conseguiu influenciá-lo tanto como influenciou o tio.
- Devo ter sido mais influenciado pelo teu avô. – acrescentou o meu pai.
- Eu fui influenciado por ambos, pelo pai e pela mãe, mas de forma diferente e sobre atitudes diferentes perante a vida e perante as realidades. O teu avô tinha pendor para questionar, para pôr em causa. Interrogava-se, por exemplo, sobre a existência de Deus, sobre o sentido do mundo, sobre o significado e o sentido da vida.
- Isso é normal. – Retorqui.
- É saudável e legítimo que cada um se interrogue sobre tudo. Mas o avô era daquelas pessoas que se contentam com interrogar e, se desejam respostas, não as procuram, pelo menos, só as procuram até certo ponto, seja lá pelos motivos que for.
- A avó não se questionava, mas também não convencia muito o avô. – Disse eu.
- A avó vivia sem necessidade de questionar ou, talvez, preferisse questionar-se a ela própria sem questionar os outros. Por exemplo, sobre o princípio e o fim do Universo, sobre as características de Deus, ela sabia as respostas que são conhecidas. Não sei se ela gostaria de saber mais do que aquilo que se sabe, mas essa limitação do estado dos conhecimentos não era impeditiva de viver normalmente. A vida não se suspende à espera de respostas de cariz meramente cognitivo, porque a vida é o que é independentemente do que possamos pensar e concluir sobre o assunto. Não sei se convencia o avô, mas também não teria muito de que o convencer. Do que ela sabia, da realidade tangível, quotidiana, também ele estava a par. Do que ambos pouco sabiam, das causas e dos fins, dos porquês e dos para quês do Homem, do Universo, também ela não sabia mais do que ele.
O meu pai estava a ficar impaciente e interveio, dirigindo-se ao tio Aniceto:
- Mas a mãe, tinha encontrado palavras de muito valor, nos textos sagrados, que tinha por verdadeiras, muito belas e inspiradoras de justiça e de amor. Ela repetia que ninguém mais, em nenhum outro lugar, lhe dissera palavras tão justas, tão bonitas e tão verdadeiras sobre o que somos e o que devemos ser.
- E achas que o pai não? O pai também pensava assim. E tu? Não pensas assim? Os Dez Mandamentos, por exemplo, não te dizem muito? O primado do amor?
- Pensava, pensava, mas havia uma grande diferença por exemplo, no que respeita aos Dez Mandamentos. A mãe dizia «Dez Mandamentos da Lei de Deus» e o pai dizia só «Dez Mandamentos». O pai era honesto e sério, até intelectualmente falando. Não vendia a alma ao diabo se isso favorecesse a sua vaidade. Ele não tinha medo, nem aversão, nem fobia à Bíblia. Era capaz de lê-la e ouvir lê-la com atenção e muita curiosidade. Tantas vezes o ouvimos dizer que os problemas não se resolvem com aversões, fobias, preconceitos e rejeições. Ele considerava-se suficientemente idóneo para reconhecer verdades onde quer que elas estivessem, tanto em diferentes facções ideológico-partidárias, quanto em diferentes religiões ou filosofias.
- Concordo. – disse o tio. – Mas o pai ficava-se por aí, pelas teorias, pelas ideias, pelos argumentos e pelo discurso. Para ele esses assuntos eram essencialmente académicos, enquanto que a mãe vivia e praticava a sua religião dentro da igreja católica a que pertencia. As doutrinas da igreja e as mensagens bíblicas para ela não eram simples objecto de análise e de estudo literário, ou filosófico, ou histórico… Eram princípios de acção e critérios de vida. Ela não trocaria a vida, a experiência, a vivência, por nenhuma ideia sobre a vida, a experiência e a vivência. Era uma mulher muito inteligente, muito coerente e com capacidade de abnegação. Acreditava no amor, nos valores da justiça, da liberdade, da paz e sacrificava-se por eles.