Estive mais de uma hora em casa da Teresa. Às quinze horas já estavamos presentes, eu, Teresa e a enfermeira Cândida. A conversa começou por descontraídas alusões ao facto de elas nunca me terem visto com o novo automóvel. Cândida tinha olhado pela janela da sala em que nos encontrávamos e manifestara surpresa pela presença de um carro vermelho de dois lugares. Era um objecto de estimação que eu raramente tirava da garagem. Desta vez teve que ser.
- Não receia que também lho roubem? – gracejou Cândida.
Soltamos umas risadas frouxas.
Era um Porche 911, de 1980, que me foi oferecido pelo meu padrinho, o almirante Seminto Vez, por achar que não tinha tempo para lhe dar o uso que ele merecia. Passava a vida no mar. Tinha sido a mulher, Evita, minha madrinha, quem o convencera a comprar o carro, descapotável, vermelho Ferrari, com magníficos cromados. O medo de conduzir, porém, sempre a impediu de sair à rua ao volante daquela máquina que ela dizia adorar.
Teresa já tinha abandonado a cadeira de rodas e, sem aparente dificuldade, aproximou-se de mim com calma e, numa voz doce, ouvi dos seus lábios:
- Antes de mais, Dr. Veríssimo, tenho aqui os dois cheques. O de vinte e cinco mil euros, que pode fazer seu e levantar quando quiser, correspondente aos honorários por si estipulados; e um de igual valor, que é da minha iniciativa, que lhe entrego e de que aceitará ser fiel depositário, mas que não deverá fazer seu, nem levantar, enquanto não for localizado e se não for localizado A. Carrancas.
Não estava à espera desta proposta de Teresa e a minha primeira reacção foi mostrar simpatia por tanta generosidade que envolvia um grau de confiança tão elevado na minha pessoa que me causou embaraço.
- Aceito o de vinte e cinco mil euros. Quanto ao outro, de igual valor, não tenho crédito que o justifique e proponho que o conserve nas suas mãos, valendo para mim o sentido da sua promessa, sem todavia a vincular.
- Seja como lhe aprouver, mas pensei que estava a dar-lhe alguma garantia.
Teresa deixou o cheque sobre a mesa. Cândida olhou para mim e comentou:
- Agora vamos à parte mais desagradável, não é?
Teresa arqueou as sobrancelhas e esforçou-se por começar:
- O meu marido é um tarado. Estava sempre com invenções. Tudo o que eu fizesse e até tudo o que eu não fizesse despertava nele um desejo incontrolável de me possuir. Eu não compreendia aquilo. Nunca fui capaz de perceber o que se passava na cabeça dele, que raio de fantasias ou o que quer que fosse. E nunca era capaz de prever os ataques dele. Às vezes tinha a sensação de que bastava olhar para ele para o deixar descontrolado. Outras vezes, porém, evitava olhá-lo e era quando acontecia. Ele vivia obcecado pelo meu corpo. Cada gesto que eu fizesse funcionava na cabeça dele como um apelo ou um sinal sexual, mas, mais do que isso, cada forma do meu corpo, peça de roupa, adereço, calçado, penteado, perfume, causavam-lhe um desassossego que só terminava quando se vinha. E, no entanto, não o via feliz. Nos primeiros tempos, parecia tributar-me uma espécie de respeito místico e fazia tudo como mandam os cânones, tratava-me como uma beldade que tem muito de divino. Incensava-me, bajulava-me, idolatrava-me… Depois começou a perder a cabeça.