Abres-me a porta, entro, com a cumplicidade que os silêncios sabem dizer melhor que mil palavras inventadas. na tua expressão quase inexpressiva, nesse vestido que nunca despes, na franqueza da vida aberta a cada bala que o tempo teima em disparar. Percebo a rotina dos dias, sou eu que chego e parto e te deixo pelos lados das paredes onde te penduro como memória de cada dia somado, de cada cama desfeita, dos beijos violentos e doces, irrepetíveis.
Quase que te percebo os nãos na ponta de cada lágrima, mascarada de um breve sorriso com que me guardas o casaco, com que me guardas. As tuas mãos penetram-me, bem dentro de mim, e fecho os olhos pronto para cada carícia, esse calor inenarrável que sinto quando me afagas os cabelos e deixas que o meu rosto se cole aos teus seios.
Na janela, na nossa janela por onde espreitamos a esquina de uma rua larga e esventrada, sabemos que o mundo passa, não pela vista, mas por sairmos e a procurarmos. São dela os passos de quem a calcorreia, e cada rosto leva no peito o Sol e o Vento que a rua empresta; não nos tocamos, apenas passamos do lado dos outros, como um exército aprumado de gente igual nas fardas, nos olhos que julgam ver da mesma cor. A janela está aberta, vem um som demasiado fraco para que o reconheça, ajuda-me a não te ouvir, tu calada e distante, afagando os meus cabelos, dando-me o colo que não passa, escutando outros ruídos.
Reergo-me com a vontade de terminar este amor que não começa, porque não foi feito para acabar, somos apenas eu e tu, mais tu que eu, porque tens o corpo pesado e doído desses barcos que sempre aproam; olho-te e já não te vejo. partiste dalgum lugar para me procurares onde já não estou; somos dois e nenhum, porque marquei lugar donde agora vieste e chego tarde, sem chave, batendo devagar.
Acordas e abres-me a porta.
Jorge