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UMA CARTA PERDIDA (porque ainda não é Natal...)

 
UMA CARTA PERDIDA (porque ainda não é Natal...)

Naquele dia acordou para um torpor relutante de quem não queria acordar. Era o dia do seu aniversário e, com uma certeza fatídica, sabia que ia ser mais um dia de repetida solidão. Lembrava-se ainda de outros aniversários, em que a sua filha lhe anunciava a data, às vezes até por ela própria esquecida, na rotina absorvente de mãe de família: ela era sempre a primeira a trazer-lhe um beijo especial e um pequeno, mas precioso presente, que reflectia o brilho dum sorriso nos seus olhos...

Mas agora, tudo era diferente. O marido morrera, os outros filhos casaram, seguiram rumos distantes, e aquela sua filha mais nova, a mais estremecida e carinhosa, apesar de morar perto dela, vivia a um universo de distância. Já não a visitava, nem lhe telefonava, nem sequer mudava de caminho, para que os seus caminhos se cruzassem por acaso... Ela não compreendia essa distância, ou melhor, forçava essa compreensão, à custa de se convencer que a sua filha não tinha culpa, era só vítima dum marido dominador e violento, que a obrigara a cortar com todos os laços emocionais do seu passado. Queria-a isolada do mundo, pretensamente ignorada por os que se ressentiram do seu abandono, para melhor a dominar nos momentos de fúria e a convencer nos momentos de tréguas.

E ela era só uma mãe dolorida e impotente, que já tentara resgatá-la em vão correndo em seu auxílio, para logo ser afastada com um - "está tudo bem, mãe, ele é só muito nervoso, mas depois não sabe o que há-de fazer para me agradar...", - nublado com sombras, não sabia se de medo ou de teimosa obsessão.
Aquela sensação de raiva, desespero e impotência, voltara com força no dia anterior, quando alguém lhe veio dizer que: - "houve barulho outra vez na casa da Clarinha". "Diz que os seus gritos se ouviam da rua, ele devia-lhe ter batido muito!". "Coitadinha, parece que nem tem família!" "Se fosse filha minha!!..."
Ela mergulhara os olhos em lágrimas turvas, juntamente com o seu coração sujo de ódio. Por "ele", por ela, por si mesma, pelo mundo! E desistira de repetir que só a Vontade da filha a resgataria, que a ela, mãe, só lhe restava manter os braços abertos e o colo pronto para a acolher...

Por isso e por tudo o resto, ela sabia que iria ter outro aniversário, talvez com a lembrança dum telefonema dos filhos distantes, mas sem sequer um beijo de parabéns da sua filha, ali tão perto e ali tão longe... e resolveu, com uma súbita urgência, escrever-lhe uma carta:

«Clarinha, minha querida filha, em que canto do teu coração tu me perdeste? Porque eu sei que estou lá, apesar de tudo, apesar de te sentir tão longe, porque tu estás em todos os recantos do meu coração!
Escassos quilómetros nos separam, mas fizeste deles, ou deixaste que fizessem deles, infindáveis léguas de indiferença. Eu sei que és cativa dum casamento mantido pela violência e pelo medo, e pelo amor aos teus filhos, que queres também proteger... e tento compreender. Porque não quero acreditar que possas amar um homem que te maltrata, que te humilha e que te tolhe as tuas liberdades mais básicas. Minha querida filha, nunca acreditarei que não me ames, que não te lembres do carinho com que te criei e das esperanças que desenhei para ti. Não quero acreditar que perdi o teu amor por ter estado contra esse casamento. Por ter tentado desviar-te os passos do abismo que o meu instinto de mãe adivinhou. Se esse homem, a quem hoje chamas marido já te maltratava em solteira, que milagre iria alterar o seu comportamento depois de casado? E por esse meu desesperado grito de fêmea que defende a cria, foste ainda mais punida, afastada de todos que te queriam bem e de mim... de MIM!, de quem nasceste e que sente na alma cada tua dor física...
Querida filha, queria tanto compreender a força que te mantém presa! Queria conhecer-lhe as tramas, e os nós cegos, e os elos, para os desmanchar, e os desatar, e os cortar, e libertar-te, enfim, e devolver-te a Vida que sonhei para ti! No entanto, desespero, porque não sei se é isso que tu queres. Não sei se, cega de uma paixão ou dum amor que não consigo entender, achaste nesse viver uma qualquer maneira de ser feliz... E novamente me sinto petrificada e amordaçada pela ameaça de que, depois de ganhar a tua indiferença, possa ainda merecer o teu ódio...
E fico, na calada do lado negro da Vida, contigo nas minhas preces, sacrificando a minha vontade de interferir, pelo bem maior que é a precária tranquilidade das tuas breves bonanças, (que acredito também as tenhas...), nesse mar revolto em que navegas.
...Estou triste por não te lembrares que eu existo... Espero que, um dia, te consigas esquecer que eu já não existo...

A Tua Mãe»


Teresa Teixeira


 
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Sterea
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Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 12/12/2009 14:22  Atualizado: 12/12/2009 14:22
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 Re: UMA CARTA PERDIDA (porque ainda não é Natal...)
...a ficção é outra maneira de narrar a realidade, digo eu, sem qualquer autoridade. e nesta carta antecipada, vemos espelhadas realidades várias, doloridas, revividas...

bjos Sterea e bom fim de semana
arfemo

Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 12/12/2009 16:46  Atualizado: 12/12/2009 16:46
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 Re: UMA CARTA PERDIDA (porque ainda não é Natal...)
é de um realismo muito comovente esta carta.que espécie de torpor nos nega a vida às vezes,a mudança de direcção?talvez o sofrimento seja um vício às vezes...um vício que não se consegue largar,um absurdo...que o grito de alerta na carta desta mãe se faça ouvir,faça acordar consciências,instigar coragens,promover mudanças.

beijinho,atenta e sensível sterea.

alex

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 12/12/2009 17:53  Atualizado: 12/12/2009 17:53
 Re: UMA CARTA PERDIDA (porque ainda não é Natal...)
Olá, Sterea.
Parabéns pela força e oportunidade deste texto sobre uma dramática realidade dos nossos dias.
E entre as diferentes vertentes deste drama, o meu coração de mãe comove-se com o dilema daquela mãe, e provavelmente de muitas outras, tão bem expresso na frase que destaco: "E fico, na calada do lado negro da Vida, contigo nas minhas preces, sacrificando a minha vontade de interferir, pelo bem maior que é a precária tranquilidade das tuas breves bonanças..."


Um beijo. Bom fim-de-semana.

Marialuz

Enviado por Tópico
Vergílio
Publicado: 12/12/2009 19:08  Atualizado: 12/12/2009 19:08
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 Re: UMA CARTA PERDIDA (porque ainda não é Natal...)
E por vezes, nos aparentes desencontros, estão perto as almas que parecem distantes....
O seu texto faz pensar...
Beijo

Enviado por Tópico
De Moura
Publicado: 12/12/2009 19:31  Atualizado: 12/12/2009 19:31
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 Re: UMA CARTA PERDIDA (porque ainda não é Natal...)
Wow, Sterea que carta! Quanta realidade nela.

Eu diria mais, que a filha nunca deixou de amar a mãe. Mas sim a vida de Clarinha mudou para outro universo, do inferno. Quanta dor essa(s) pobre(s)suporta?! A dor fisica deve ser a que doí menos entre as outras. Como esquecer o carinho e o amor de uma mãe nesses momentos dolorosos? Não se esquece pelo contrário, é quando se sente e mais sofre por falta desse amor e afecto.

Gostei muito desta tua carta!

Um beijinho,
Cina

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/12/2009 11:13  Atualizado: 14/12/2009 11:13
 Re: UMA CARTA PERDIDA (porque ainda não é Natal...)
Infelizmente Teresa esta é uma realidade que está presente em muitas vidas silenciosas.
As mulheres acabam por aceitar estes condicionalismos de maridos ultrapassados no tempo. Fazem-no apenas porque querem proteger a sua família. Os filhos são tudo para elas e valem todos os sacrifícios, mesmo a violência física é suportada com amor.
Por incrível ou contraditória que pareça acabo por ter uma grande admiração por esta gente (homem ou mulher) que suporta a dor em benefício (?) dos filhos. Não me perguntem o porque, mas são estes exemplos de vida que me fazem muitas vezes acreditar que depois da morte há outra vida. Não era justo esta gente desperdiçar uma única vida com tanto sofrimento.
Bonito texto como sempre e com muito carinho nas palavras.
Beijo
Boa Semana
JLL

Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 14/12/2009 12:25  Atualizado: 14/12/2009 12:25
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 Re: UMA CARTA PERDIDA (porque ainda não é Natal...)
Querida esta carta dava um filme tal o realismo de que empregnaste as palavras... Doeu ao ler o aperto desse nó tão sem saída aparente...Uma carta ao mesmo tempo cheia de força. Beijinho

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/12/2009 16:41  Atualizado: 14/12/2009 16:41
 Re: UMA CARTA PERDIDA (porque ainda não é Natal...)
Sterea.
Não sou mãe infelizmente! Mas tive uma que foi o maior e sublime amor da minha vida. Hoje que já não se encontra fisicamente comigo, acompanha-me sempre e ilumina-me nos dias de tempestade. ainda sinto a sua presença.

Neste texto uma mãe é esquecida em prol de um marido violento, uma vida de inferno que esta mulher é incapaz de por termo. A subjugação torna as vitimas cegas e não percebem que estao a provocar traumas profundos na construção da personalidade dos filhos.

Mesmo assim esta carta poderia ter outro desfecho e por amor havia que fazer denuncia, estando a vida da filha e dos netos em perigo iminente.

Vidas dentro de outras infelizes nos tempos que se dizem modernos.

Um texto fabuloso


Beijo azul

Enviado por Tópico
Avozita
Publicado: 14/12/2009 17:49  Atualizado: 14/12/2009 17:49
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 Re: UMA CARTA PERDIDA (porque ainda não é Natal...)
Carta (texto) extraordinariamente bem escrita,
duma triste realidade cada vez mais presente, quando deveria ser o contrário.
Quanto sofrimento para mães e filhas afastadas pelo medo.
Destaco o ultimo periodo:
...Estou triste por não te lembrares que eu existo... Espero que, um dia, te consigas esquecer que eu já não existo...
Sentida e sofrida.
Obrigada pela partilha.
Beijinho
Antonieta