A.Carrancas continuou desaparecido sem dar sinais de vida. Embora a polícia não se tenha convencido de que o facto de o carro aparecer abandonado no meio da ponte se tenha ficado dever à simples coincidência da falta de combustível, o certo é que não apareceu nenhum cadáver ou outros indícios que pudessem relacionar o veículo com outro crime que não fosse o de furto de que eu, entretanto, me queixara formalmente.
Nos dez anos seguintes, vários cadáveres foram retirados das águas daquele rio. Porém, nenhum deles, pela ordem natural das coisas e pelas regras da mais elementar experiência, poderiam estar relacionados com o caso do meu automóvel. Seis desses casos tiveram cabal explicação no próprio dia da sua ocorrência. Só um ficou por explicar, mas não podia estar relacionado com o caso do carro abandonado sobre a ponte, pela óbvia razão de a morte ter ocorrido alguns anos depois.
Cada vez mais me deixei seduzir pela tese da morte de A. Carrancas e não pela ideia de que estivesse simplesmente desaparecido, como toda a gente parecia supor, ou parecia fazer crer.
Era muito mais interessante para todos pensar-se que A. Carrancas andava a monte, fugindo à justiça. Mas ele podia ter sido assassinado, ou simplesmente ter morrido, dias antes da alegada tentativa de assassínio de Teresa e esta, conluiada com a enfermeira, terem feito desaparecer ou terem ocultado o cadáver e simulado aquela tentativa, atribuindo-a a A.Carrancas e queixando-se à polícia de um crime que ele não cometeu e pelo qual não estaria em condições de alguma vez responder.
O caso andava a absorver-me demasiado e, quanto mais pensava numa possível explicação que ajudasse a desvendar o intrincado problema, mais ele se intricava.
Depois do que Teresa e Cândida me contaram sobre abusos sexuais e ofensas corporais, pareceu-me ser altura de me amparar ao saber e experiência do meu colega Carlos Soares.
Este ilustre advogado também foi de opinião que eu tinha dado fé a uma determinada versão e não conseguia ser imparcial na ponderação das variáveis. Considerava os meus palpites demasiado inquinados de emoções e afectos e representações prévias, como se eu tivesse interesse num desfecho e não noutro. A tese da morte parecia-lhe tão plausível como a da não morte.
- Vejamos, dizia ele - A. Carrancas pode ter um efectivo interesse em que alguém pense como o colega está a pensar. Então, o facto de estar desaparecido permite e, de certo modo, até obriga a que se pense nisso mesmo.
- Quer dizer que A.Carrancas pode ter desaparecido com o intuito de fazer pensar que foi assassinado?
- Sim.
- Mas a minha tese é que ele foi assassinado e que pretendem fazer pensar que está simplesmente desaparecido para fugir à justiça.
- Alguma coisa o impede de pensar, por exemplo, que tudo não passa de uma grande simulação, de um grande embuste, para entreter e enganar a justiça.
- Como? Que a tentativa de homicídio de Teresa, os maus tratos, a queixa, a cadeira de rodas, o desaparecimento de A. Carrancas, podem não passar de um embuste?
- Isso mesmo. E vou mais longe, caro colega, prepare-se para todo o tipo de surpresas. Não descarte a hipótese de A. Carrancas continuar no melhor dos relacionamentos com Teresa, a encontrar-se com ela, enquanto o ex.mo colega dá voltas na cama sem poder adormecer a pensar que algures alguém ocultou o seu cadáver depois de ter cometido um brutal homicídio.
Neste momento não pude deixar de rir na cara do colega Carlos Soares. Mas este não se descompôs:
- Ria, ria à vontade que lhe faz bem.
- Desculpe, mas não estava preparado para ouvir uma coisa destas.
- Convém estar preparado para tudo. Aceite como natural a possibilidade de, um dia destes, sem esperar e sem o desejar, dar de caras com ele na rua ou em casa de Teresa…
- Não, agora acho que o colega está a brincar. Não está a falar a sério, pois não?
- Estou, estou. E ao dizer-lhe tudo isto suponho, obviamente, que A. Carrancas existiu alguma vez e não é também uma invenção.