Crónicas : 

PARA TI, LEITOR!

 
Desculpa caro leitor, mas não esperes grande coisa desta crónica com sabor a derrota, não por este ou por aquele, afirmo já, mas por mim. Esta semana não quero saber quem morreu, quem se espetou de carro contra um sobreiro, não quero saber de grandes cabeçalhos que nos fazem afundar os olhos, nem tão-pouco na hipótese se daqui a poucos anos haverá ou não reformas para os velhinhos.

Estou-me nas tintas para o primeiro, segundo ou terceiro ministro, estou-me marimbando se o Benfica vai ganhar ou perder, muito menos quero saber se a gripe A vai chegar ao meu peito com sete chaves. Confesso que estou pouco puro, que ardo como uma tocha junto de um armazém de pirotecnia.

A minha cabeça está por conta do silêncio, nem sequer penso em pestanejar quanto mais levantar um braço para aquele que se vai atirar de um quinto andar. Sou assim, pronto, de palavras inteiramente dolorosas, mas sem rancor. Se a corrupção existe é porque existe um sentido na vida, ignoro ambos, por isso, quero lá saber quem rouba ou quem fica sem ele. Viu?, esta semana estou sem pontinha de céu, sem uma lágrima para contribuir para um velório.

Estou tão mal com a vida que era capaz de riscar toda a música.
Não sei o que me fizeram, nem como me tornei assim, tão dependente de ti, leitor, que me olhas por dentro das palavras escritas e daquelas que hão-de vir, que, por não teres nada na manga, vens na procura de uma salvação, ou “ignorante sabedoria”.

É triste não ter nada a te dizer, nem um ai que eu morro, nem piu de aviário, nem esmola para burlar um santo. Se ao menos num sopro tirasse deus da poltrona.
Nem cebola me faz chorar. Nadinha deste mundo. Nem do outro. Escrevo porque uso pilhas Duracell e já me prometeram a eternidade ao lado do Vasco da gama, que descobriu o que eu há muito imaginava.

Se o senhor da funerária me estiver a ler, que vá depressa encomendar meu caixão, pode ser caixote, a minha medida é: um metro e oitenta, fora os sapatos. Quero uma coisinha simples, vinte a trinta convidados em fila indiana pela rua fora, se não houver padre na frente não faz mal, há gente por aí que faz o mesmo serviço por menor preço e maior caridade.

Se eu morrer, é para que estas palavras vivam dentro do que é nosso. Como pude eu me esquecer de ti, meu leitor, da tua vinda a esta página, dos teus olhos concentrados, dos teus dedos que passam páginas sem criar vincos. Tão leves que me atrofiam de inveja por saber que eu, cronista de lugares incomuns, durmo pesado, logo, o sonho estanca. Não penses em deitar água quente ou maus-olhados sobre este texto, eu já havia pensado nisso primeiro. Repara como sangram as palavras.

Que me perdoe o balconista da pastelaria Pérola por não lhe agradecer o café bem tirado. Vim embora sem sorriso, ombros sem nivelamento, gastroenterite à superfície do rosto, lembras-te Júlio?
Mais me perdoe ainda Barcelos por lhe cavar mais fundo o rio.

Sou um cronista acabado, de hoje em diante dedicarei os meus dias a instrumentos de sopro, para que perturbe o sono dos vampiros. Leitor, não me peças para puxar sol aos textos, prefiro assim, escuro como o caraças, a ver-se-lhe os dentes branquinhos na frente, não de quem vai roer, mas de quem ri da sua própria tristeza. Não me digas as horas, elas só existem no tempo, e eu, que em tempos ofereci bússolas a mendigos, perco-me agora nesta minha indecisão de escrever estas palavras, arrancadas de limoeiro.

Dizia, esta semana a minha misericórdia deu o pifo, a fome no mundo só me faz mais uma ferida. A sensibilidade anda por mares profundos. Tudo pelo medo de te perder, não te ver mais aqui, sentado neste calhau, a ressuscitar tudo o que é meu, pois a tua ausência é como um pouco de veneno.

Leitor, antes de ires embora, dá cá um abraço, preciso de te sentir, de te agradecer como um índio. Eu sem ti sou vento sem movimento, sou um barco ali parado.
Preciso que me leias com atenção, que faças círculos com os braços, velozmente, para que tudo redemoinhe dentro deste texto, as palavras todas fora do lugar, já, imediatamente, pairando sobre este inverno, e que caiam de novo na página com outro sentido!

Qual metáforas em agulha, qual sino agora a tocar, a morte só é válida por quinze dias, que é o tempo do meu regresso.
Valeu a pena teres vindo aqui, salvaste-me da falta de talento, do ter que ferir a carne com o mesmo lápis que pintei a paisagem no meu quarto. Leitor, sem ti a música acaba-se, e as palavras - que sem os teus olhos não valem nada - também se acabam. Bem hajas!
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 24/11/2009 15:14  Atualizado: 24/11/2009 15:14
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
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Mensagens: 7238
 Re: PARA TI, LEITOR! para flávio
como tua leitora,te agradeço o "bem-hajas" e também os teus textos e o teu enorme talento.

um bem-hajas também para ti,caro escritor, e
um abraço,flávio.

alex


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/11/2009 15:16  Atualizado: 24/11/2009 15:18
 Re: PARA TI, LEITOR!
ai porra!... fizeste-me percorrer todos esses parágrafos. mas valeu a pena mesmo foi pra mim. aprendendo, de como segurar um ledor numa crônica banzo, quase suicida, e de como dialogar com a morte enganando-a com metáforas.
vai daqui então um forte abraço meu amigo Flávio.
'e não se fala mais nisso'.

Silveira


Enviado por Tópico
Caopoeta
Publicado: 24/11/2009 15:17  Atualizado: 24/11/2009 15:17
Colaborador
Usuário desde: 12/07/2007
Localidade:
Mensagens: 1988
 Re: PARA TI, LEITOR!
" a morte só é válida por quinze dias, que é o tempo do meu regresso."

pois bem,
espero pelo teu regresso.

abraço.

Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 24/11/2009 15:21  Atualizado: 24/11/2009 15:21
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 8112
 Re: PARA TI, LEITOR!
Li tudinho. Bem hajas p'a ti também. Abraço.

Enviado por Tópico
AnaMartins
Publicado: 24/11/2009 16:31  Atualizado: 24/11/2009 16:31
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Localidade: Porto
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 Re: PARA TI, LEITOR!
sempre que venho a este espaço tenho aoportunidade de ler coisas tão fsntásticas quer em prosa quer em poesia que me sinto pequenina. Ando aqui por puro lazer, por turismo conforme gosto de dizer. Mas o teu texto hoje fez-me sentir minúscula. Bolas! Escreves bem como o raio que te parta!

És sem dúvida um dos meus preferidos deste site e nao tenho pejo de o dizer!

Um abraço aqui da leitora.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/11/2009 16:49  Atualizado: 24/11/2009 16:49
 Re: PARA TI, LEITOR!
cheguei a temer uma despedida
se os sinos tocarem por ti é só para te aclamarem que tu jamais morrerás

abraço


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/11/2009 17:33  Atualizado: 24/11/2009 17:33
 Re: PARA TI, LEITOR!
Caro Amigo!

É um prazer enorme ler os teus pensamentos mesmo que alguns possam fazer do meu intelecto gato-sapato. Não importa, e nem quero saber se logo vou estar agoniado por não saber escrever assim.
Quero apenas saber se tens espaço nessa viagem para mais um, também já não quero saber mais deste mundo.
E vou passar a tomar café no Pérola sempre que passe por Barcelos, possivelmente está aí o segredo da tua escrita.
Esquece os instrumentos de sopro.

Um abraço
JLL

Enviado por Tópico
HorrorisCausa
Publicado: 24/11/2009 18:06  Atualizado: 24/11/2009 18:06
Administrador
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Mensagens: 3764
 Re: PARA TI, LEITOR!
dass! fiquei sem folêgo, não tenho por habito ler testamentos, mas valeu a pena ver que fui contemplada,dá cá esse abraço, afinal também sou tua leitora.

beijo

Enviado por Tópico
Henricabilio
Publicado: 24/11/2009 18:43  Atualizado: 24/11/2009 18:45
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Localidade: Caldas da Rainha - Portugal
Mensagens: 6963
 Re: PARA TI, LEITOR!
Que será de nós
quando, em cima de uma casca de noz,
tivermos de desatar os nós
que a SUBTIL ironia
nos irá colocar,
pois na nova ortografia
será apenas SUTIL no voar.
(rss)

Já versejava o Pessoa que "o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros" e em certa medida faz algum sentido.
Siga a música, a poesia e também as crónicas (des)encantadas.

Um abraçooo! Abílio

Enviado por Tópico
miriade
Publicado: 25/11/2009 01:15  Atualizado: 25/11/2009 01:17
Colaborador
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Localidade: Brasil
Mensagens: 2171
 Re: PARA TI, LEITOR!
Bem que poderia ter esticado mais um bocadinho, estava tão bom...rsrs, dessas que pinta uma inveja boa, em pensar: gostaria de ter escrito.Muito bom seus escritos., a leitora aqui agradece.

Beijocarinho, Lu