A crônica do leilão
Por
Madai de Queiroz
1883,caminho à um local onde está acontecendo um leilão.100 negros à venda.Me aproximo para inteirar-me da situação.O cenário é cruel,retrato da escravidão,não só pelo produto que está sendo leiloado,mas,pelas marcas das atrocidades que refletem cada produto.-o produto é o homem,senhores!
Trezentos mil réis! Grita o leiloeiro. Bento Batuqueiro,87 anos,imprestável.leproso, cego de um olho.Alguém compra.Damião Preto,76 anos,aleijado,surdo-vale cinqüenta mil réis.Uma figura estranha aproxima-se e dá.
Diante daquela feira clandestina, pergunto-me:o que levaria alguém a comprar um escravo,morfético,inútil,leproso,e ainda mais,aleijado e cego? Quem arriscaria contaminar seus escravos ‘’saudáveis’’?E ainda outra coisa deixa-me cabreiro:por que um escravo valeria tanto?
A cena é chocante,fora aqueles vendidos imediatamente,sem muita insistência do leiloeiro,pude perceber negros pestilentos,olhos vazados,alguns membros corroídos pela lepra,alguns desses, valiam até oitocentos mil réis.
Vou até uma pracinha onde um senhor de largos bigodes,fuma um charuto e faz movimentos rítmicos nas pernas;cumprimento-o e não é fácil perceber pelos traços do seu rosto que aparenta seus quase 70 anos.
-Você vem do leilão? Pergunta-me.Como se quisesse adivinhar todas as interrogações que perscrutam à minha mente.Todas aquelas dúvidas,que corroíam meu ser,diante das cenas que acabara de ver.Por alguns instantes lembrei de uma carta que minha mãe guardava de uma conhecida sua,que relatava sobre algumas negras,jovens bonitas,cobertas de jóias pelas suas senhoras,para exercerem a prostituição nas ruas;e ganhavam um bom dinheiro,que ficava todo com suas senhoras.Era bem o retrato do quadro deplorável e imoral da escravidão,figurado no sadismo discarado das senhoras donas de escravos.
Sim,respondo.Você compra escravos?É a pergunta daquele senhor.
-Não.Não posso conter a pergunta que não quer calar-se.Por que um escravo naquelas condições vale tanto?
-Simples,responde ele.E Dalí a conversa torna-se uma espécie de protesto daquele senhor.-Esses negros,dão uma boa renda aos seus senhores.Respeitados senhores os compram para explorá-los à caridade pública.Ficavam ali mesmo,nas ruas,dormiam ali mesmo.Depois quando não serviam mais para nada,eram arrastados e jogados em porões.longe das senzalas e trancados ali, até que seus senhores decidissem com seria dado cabo de suas vidas.
Aquelas revelações,atreladas às imagens que vira no leilão,fazem-me discorrer com aquele senhor; histórias que ouvia,contadas pela minha mãe.Senhoras que quebravam os saltos das suas lindas botinas vindas da França,arrebentando os dentes das negras;outras vezes à marteladas.Outras negras que tiveram seus seios cortados e servidos aos seus senhores,que comiam para que as senhoras brancas não sofressem nenhuma denúncia,por ciúmes ou outro motivo qualquer.
Então era tudo verdade?Pergunto-lhe.Achei que fosse apenas histórias bobas que nos foram contadas.
Volto para casa e as Palavras daquele senhor ecoam na mente,tão fortes quanto as cenas do leilão.Em casa,pego um livro”DICIONÁRIO DA ESCRAVIDÃO BRASILEIRA”e leio:”Desde a captura na África ,passando por sofrimento nos tumbeiros(navios negreiros),que os trouxeram ao Brasil,os negros foram pasto de bestialidade humana que a escravidão gerou.Negros que morriam de peste,fome,de chibatadas,de quem os arrancavam os órgãos genitais,que se aleijavam,cegavam os que eram passados ao mel e entregues às vorazes formigas.”
-Quanta maldade,meu Deus!
Um trecho mais abaixo diz:”negrinhos que ao nascer,eram praticamente retirados
do ventre das suas mães e mortos para que não interrompessem suas mães no trabalho,isto quando por um acidente,as mães não perdiam suas crias no aborto forçado.Outros negrinhos que morriam nas senzalas,porque o leite de suas mães alimentavam os senhorzinhos brancos.”
Tento dormir,mas meus pensamentos martirizam-me e o retrato da crueldade imposto por tudo que vi e ouvi,rouba-me o sono e transporta-me novamente para aquele leilão.
-Trezentos mil réis-Bento Batuqueiro,87 anos,imprestável,leproso,cego de um olho