PAULO MONTEIRO
“Humor com Pimenta” (Elisabeth Souza Ferreira, com ilustrações de Diego Chimango e capa de Scheldon Souza Ferreira, Passo Fundo: Berthier, 2009) é um dos livros mais interessantes publicados em Passo Fundo nos últimos anos. A autora já publicou outras obras, mas nenhuma de “literatura fantástica”, e muito menos eivada de humor.
Álvaro Lins, um dos críticos literários brasileiros mais expressivos do Século XX, legou-nos um ensaio clássico sobre a literatura que encontra em Edgar Alan Poe seu putativo criador. Putativo criador, porque essa literatura existe desde a Antiguidade. O ensaio, intitulado “No Mundo do Romance Policial”, está entre as páginas 259 e 271 da primeira edição de “O Relógio e o Quadrante” (Editora Civilização Brasileira, Rio, 1964).
No estilo direto que o caracterizou Álvaro Lins, já nas primeiras linhas escreve com todas as letras: “O romance policial não é literatura no conceito estético da palavra”. Uma página adiante (260), assim resume o que seja esse tipo de produção literária: “Qualquer romance, quando integralmente construído, é um mundo fechado, do qual o leitor participa, durante a leitura, esquecendo a existência ordinária. O romance policial, mais do que os outros, é um mundo particular e hermético, com os seus personagens, com os seus episódios, com as suas emoções, com os seus encantos, com as suas grandezas e misérias, tudo diferente do mundo normal em que vivemos. A leitura de um romance policial é uma evasão, uma troca de realidades, é a entrada num universo de natureza anormal, do crime, apaixonando os leitores não só pelo extraordinário, mas também por uma ligação secreta com este mundo de horrores, operada na circunstância de que no homem mais virtuoso ou tímido existe a possibilidade de praticar o ato anormal do criminoso”.
O conceito que o autor “Jornal de Crítica” faz do romance policial pode-se aplicar ao conto e à novela do gênero em epígrafe e aparentados como as literaturas de terror e far-west, como de resto a toda a “literatura fantástica”.
Os nove contos de “Humor com Pimenta”, em sua maior parte, expõem o fantástico e o terror. Não o fazem, porém, com seriedade. Escritora sensível, Elisabeth Souza Ferreira, vê no sobrenatural literário uma forma de humor. E assim o vê com os olhos de quem convive com o sobrenatural por opção de fé, a mesma opção que a tornou autora de obras sobre essa temática.
Crescemos sob o medo a figuras mitológicas, desde o velhíssimo Lobisomem ao Velho do Saco ou ao Seqüestrador de Criancinhas. O Pecado é outra dessas figuras aterradoras, em que foi transformada a tradução hebraica de desobediência. O fantástico, seja policial ou terror, é a “natureza anormal” de que nos fala Álvaro Lins, elevado ao humorístico. Daí a curiosidade. Como na vida real, todos nós sabemos o final da história: o Lobisomem, o Velho do Saco, o Seqüestrador de Criancinhas e assemelhados não nos pegarão.
A pimenta, que Elisabeth acrescenta ao humor, é o ridículo das personagens, como vemos em todas as personagens que aparecem ao longo dos nove histórias que compõe o livro. O conto “A Maldição da Cadeira” é ilustrativo. Irritado com o dono do bar, Chico, o bêbado, lança uma maldição sobre a cadeira da qual foi enxotado. E funciona. Como nos velhos dramalhões mexicanos, começa a mortandade de tantos quantos sentem nela. E para que a humanidade não acabe exterminada, a cadeira acaba encontrando o amaldiçoador que termina “vítima da própria maldição”.
A “natureza anormal” é também o absurdo, absurdo presente nos mitos ancestrais e contemporâneos. A fusão entre o humor e o ridículo mostra a absurdeza do fantástico. Não é à-toa que o vômito está presente no conto “Sacolas e Sacolões”, onde a absurdidade chega ao extremo. As pessoas fumam num ônibus urbano. Um menino carrega um engradado de refrigerantes. Usa o líquido de uma garrafa, limpando o rosto do motorista ferido com uma pedrada. Aparece até um gaúcho usando gravata (e não um lenço). Em “No Escritório”, outro conto de inegável absurdez, mais uma cena de vômito. E por não vomitar, a avó de “A Mesa” “cai dura no chão”, morta, após ingerir a urina envenenada do gatinho da empregada, pensado que fosse suco de laranja.
A presença de personagens sem nomes próprios é uma constante ao longo dos nove contos de “Humor com Pimenta”. A despersonalização é outra demonstração do absurdo, que é uma realidade cada vez mias constatável com a concentração das pessoas nas cidades. Ao antepor o adjetivo ao substantivo, como ocorre na maioria das vezes em que essas palavras se encontram, a Autora continua demonstrando que a pessoa, representada pelo substantivo, é secundária.
“O romance policial (e toda a literatura fantástica, sou eu quem o diz, dialogando com Álvaro Lins) não é literatura no conceito estético desta palavra”, e não o é porque “Aquele problema da criação poética através do estilo nunca foi inteiramente resolvido pelos seus autores; e não o será nunca, talvez”. Ao apimentar o fantástico, Elisabete Souza Ferreira, produz o absurdo. E isso é a radicalização da “natureza anormal”, expressa através das personagens. Na prática e absurdidade do absurdo. Aí está a resolução do “problema estético”, introduzindo o fantástico na literatura esteticamente literária, “talvez”, mestre Álvaro Lins.
poeta brasileiro da geração do mimeógrafo pertence a diversas entidades culturais do brasil e do exterior estudioso de história é autor de centenas de artigos e ensaios sobre temas culturais literários e históricos