Avisto do 5º andar a figura mítica que, como tantos sonhos, já quase não existem, o amolador de facas. Há muito que por cá não passava. Sujeito de figura modesta, sempre com a bicicleta ao lado, nunca em cima dela a não ser para fazer rodar a pedra. Pelo menos nunca que eu tenha visto. Interrogo se será respeito ou consideração. Nem aos burros antigamente o faziam, puxavam carroças e ainda tinham de carregar com os donos. Devagar, parecendo em procissão de dia de finados, caminha rua acima, com o seu tão característico pífaro, flauta de cinco tubos. Em tempos, por pura coincidência, ou não, era eu criança, precisamente na altura que me estava a portar mal lá se ouvia o apito. Era o amolador de facas. Ai ai! Vez? Estás-te a portar mal! Lá vem o homem das facas para te levar! Dizia a minha avó na tentativa de me impor algum receio para que me comportasse. Nunca o tive ,o receio. Sempre olhei para aquela figura caricata e original como uma pessoa mística sim, mas nunca como temerosa. Sempre soube que por detrás das rugas que lhe carregam o rosto, à sombra daquela boina velha, está um homem, humilde, de olhos carregados de sonhos. Quando olhado de relance talvez pareça sombrio, caso não se dêem ao trabalho de olhar com olhos de ver, mas não passa de uma pessoa com sorriso simpático e palavras amigas mesmo com a voz rouca e cansada. Solitário, só com a companheira bicicleta a caminhar a seu lado. Sempre na bicicleta está também a caixinha onde guarda as ferramentas, alicates e afins. No cesto à frente ou atrás do assento, mas sempre lá. Instrumento artesanal mas de tanta importância para por o pão na mesa. Com uma pedra de esmeril que nada tem de vulgar pois era a melhor de todas, a que melhor amolava as tesouras e facas. Laminas que mesmo depois de cansadas, postas nas mãos mágicas do Homem das facas rejuvenesciam, parecendo novas, a cortar como nunca antes cortaram.
Quem não gostava de ter esse dom? Voltar a dar vida, nem que seja a facas e tesouras. Até os guarda-chuvas ele conserta, pondo novos cabos ou mudando varetas. Mais que a simples magia de devolver a graça aos utensílios, tinha também a magia do tempo. Mais certo que a ciência lógica da meteorologia, a sua vinda era sinal de mudança do tempo. Pouco depois de se manifestar pelas ruas, atrás vinha a chuva e os vendavais, como que se o perseguissem ou seguissem ou talvez até um simples acordo com a Natureza das cousas, que humildemente sopram o pó das laminas afiadas deixado pelo chão. De verão ou de inverno, por onde passa trás a chuva. Facto curioso mas real. Rara será a vez que ele aparece que não seja precedido ou seguido de nuvens carregadas de chuva. Que quererá dizer? Qual o significado?
E lá segue ele, com a bicicleta a acompanhá-lo como a própria sombra, tocando a sua flauta de cinco tubos sempre com aquela melodia característica que não é nem alegre nem triste, que o som percorre as ruas e entra nas casas das pessoas como o canto das sereias, hipnotizando quem os ouvisse. Ninguém lhe era indiferente. Quem não sabe quem é? Ou não se lembra da melodia?
Cada vez que se ouvem aquelas notas musicais a ecoarem pelo ar fora já se sabe, vem aí o Amolador de facas.
Moon_T