Crónicas : 

Onde pára a página 53?!

 
na semana passada fui apresentar o livro de um amigo meu que já não via desde a monarquia de 1887. fiquei contente por saber que ele tem destaque em livrarias e que, de vez em quando, é solicitado para escolas secundárias e enfrentar os alunos.
recebi um exemplar, que ainda cheirava a pinho, no meu correio electrónico. eheh, o pinho foi só para disfarçar.

passei duas noites inteiriças debruçado na obra que, salvo erro, esta dor de costas, no elo catorze, foi derivado ao excesso de peso que dei à leitura.

era um romance triangular, não no seu formato, é claro, mas nas relações amorosas dos seus personagens que, segundo o hilário, o escritor que, antes de o ser, pegava em enxada para desbravar a terra. e hoje, ei-lo, de postura quase parlamentar, camisa de linho, em princípio, um ar fresco de quem deixou de fumar há vários anos, e por aí.

o livro, era na sua concepção, ou minha, um fiasco à literatura. de barriga cheia, e sede morta, com copos de branco bom, rumámos ao anfiteatro, onde a imprenssa estava comodamente instalada na primeira fila limpando as lentes à base de pequenos cuspos e camisola. e por detrás deles, nos bancos veludos, a claque de apoiantes.

aquilo prometia sucesso de vendas, e o escritor, seguramente umas boas duas horas assinando livros que, na minha modéstia opinião, mais lhe valia a utilização de um carimbo pré-concebido para o efeito de autografação. na mesa éramos cinco inicialmente, pois a um deu-lhe uma vontade tremenda de fazer conjecturas na casa-de-banho mais próxima. o pessoal estava animado, pois de todos, ninguém passaria no teste de embriaguez.

a mulher das limpezas andava sempre por ali à cata de puriscas, pois é sabido que os escritores têm súbitas vontades não explicadas, incluindo aquelas que me fez tapar o nariz com um lenço tipo os pistoleiros do farwest.

a obra chama-se: da minha janela à tua.
título este que, assim que o li, deu-me salpicos nos tornozelos, sei lá porquê.
a sessão começou com uma pintora ruiva, amiga do meu amigo escritor, a fazer uma abordagem neo-qualquer coisa sobre a essência que a levou a inspirar-se na realização da capa. o amor no seu estado selvagem, a paixão ardente, as infedelidades, o sexo como rejuvenescimento da pele. da pele?, pensei, esta gaja droga-se com certeza. ok. no problem, continuei de olhos fechados a passar a mensagem que reflectia sobre os assuntos que iam sendo dito com uma glaumourosidade que me antecipava o sono. e dormia, dormia numa apática esperança de acordar no meu chalé.

feitas as hostes da casa, o livro esfriando sobre a mesa, era a minha vez de falar, apontar as mais puras alegorias sobre o novelo do romance. onde, confesso, na altura que o li, e por isso é que aguentei a leitura, me provocava excitação.
pena é que não tenha fotos para acompanhar aquela putice toda misturada em que era cus para um lado pernas abertas para outro. enfim, uma rebaldaria digna somente de revista porno com objectivas antigas. bem, bastou um leve toque nas minhas mãos, que estavam cruzadas sobre a mesa, para eu acordar num: «no meu traseiro não! no meu traseiro não!

era a minha vez de falar.

comparei o livro aos romances do jorge amado e, o meu amigo, bem perto de mim, sorria como um demente acabado de ter alta, coloquei metáforas nas metáforas do livro, dei um brilho superlativo. recomendei aos presentes que em vez de um levassem dois ou três, uma maravilha de história que eu, segundo as minhas contas literárias, será das melhores deste século.

reforcei: das melhores coisinhas que por aí andam! Nisto, os apoiantes, aplaudindo, aplaudindo, até eliminar os mosquitos da sala, esses safados que fizeram troça de mim enquanto eu mantinha respeito no meu sono.

após minha intervenção, aqui resumida para poupança de tinteiro, os críticos avançaram sobre com questões que eu sinceramente, enfim, vá-se lá saber, o que... pois... é... página cinquenta e três, pediram opinião sobre o enlace que havia nessa página, como caracterizar a cena em que a criada leonor se despe perante dom berardo, em termos da morfologia das palavras, ao nível da descrição da cena do sexo, assim como a caraterização das personagens no plano narrativo.

sim senhor, respondi. peguei no meu belo exemplar que o hilário me ofertou durante o jantar e que fiz questão de, entre aspas, passear o livro debaixo do braço, mesmo quando fui a correr para os aposentos sanitários afim de proceder à evacuação de um arroz de pato do dia anterior.

uma casa-de-banho chiquérrima, com aqueles sprays que injectam aromas de minuto a minuto, senti-me como na última vez quando fiz por detrás de um dióspireiro.
e, aproveitando o ambience, já que o tempo era escasso, para rever uns apontamentos, que de certos úteis para a apresentação do livro em questão. então dizia eu, que peguei no livro, folheando-o até chegar à página cinquenta e três.

bem, aqui é que o gato pegou de traseira, porque, coisas do diabo, só pode, o meu exemplar não tinha a página cinquenta e três! nem as seguintes. ou seja, sete páginas que... esperem lá! mas é claro, recordo agora, com uma vontade de me esfaquear, que essas sete paginas em falta, foram as tais... as tais... as tais que substituiram a falta de papel higiénico lá na casa-de-banho, royal. aproveitei o facto de um fotógrafo se intrometer para disparar uma foto e, nesse momento em que sorria, coloquei mil disfarces na voz, mil reticências para ter tempo de dizer algumas palavras sobre a página cinquenta e três que perante tanta gente de renome, não podia abrir mãos a mistérios.
ácomecei a falar, mas divagando.

na página cinquenta e três, (eu falando) o autor descreve com minúcia o desejo ardente que dom berardo tem por leonor, onde...que...de facto...será...um...caso...digamos que...no plano literário... (a plateia já se coçava).

para desencravar, tomei uma respiração forte, levantei-me, olhei a porta de saída mais próxima de mim, e disse em voz alta:

- bem, meus camaradas de letras, o que tenho na verdade tenho a dizer é o seguinte: morfológicamente e sintáticamente, o que ireis encontrar na página 53, será, (três...dois...um...) uma bela foda! e fui-me embora numa despedida que até hoje não sei se foi definitiva.
 
Autor
flavio silver
 
Texto
Data
Leituras
951
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
2 pontos
2
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/10/2009 18:03  Atualizado: 23/10/2009 18:03
 Re: Onde pára a página 53?!
A isso chama-se pontaria para a merda. E tinha logo que ser a pág. 53 duas vezes!
Abraço

Enviado por Tópico
Alberto da fonseca
Publicado: 23/10/2009 18:35  Atualizado: 23/10/2009 18:35
Membro de honra
Usuário desde: 01/12/2007
Localidade: Natural de Sacavém,residente em Les Vans sul da Ardéche França
Mensagens: 7080
 Re: Onde pára a página 53?!
Só podia ser Flávio Silver, está tudo dito!

Felizmente que não tenho inteligencia suficiente para escrever um livro capaz de ser publicado mas se tivesse, teria que ser o Flávio a fazer a apresentação, seria em beleza!

Abraço à antiga, quero dizer, como os antigos faziam.
A. da fonseca