não lembras! pois não. teu pai já partiu como mãe e irmão. quem ficou. sobrou na aflição. agora mortos vivos. não lembras? provavelmente esqueceste! a mesma escola quando crianças fomos. depois a adolescência no mesmo liceu. não lembras mas lembro eu. presos vós quatro pela mão. e uma mãe sempre presente a deixar-vos na escola. o que ficou na memória. teus pés e uma meia de cada cor. não era fácil pois não. eu sei. mas não podia ser assim. não é? teu pai um grande senhor. grande arte. sempre a voar pelas europas. Paris Brasil ou até as Américas. não sei. aquele cachimbo nos beiços com ar de artista num estilo do próprio pintor. nos cabelos compridos alguns já pintavam o branco. eu sei. conheço os óleos. as telas e os pincéis que levava debaixo do braço e nos bolsos grandes boémias pintadas a preto e azul. tudo fez e vendeu p’ra comprar Paris. mas gastou a alma que nem tinha. hotéis e luxos. grandes sonhos. grandes obras de arte. grande nome. pequeno no amor. pobre de ausência. mendigo do esquecimento. filhos ficaram pra trás estimado à distância. havia carinho de filho p’ra pai. afinal o homem era grande em talento mas podre de sentimento. já nem lembras! pois não. todos vós nasceste com um pincel no coração. mas nenhum seguiu as artes com devoção. apenas a revolta no coração. a crescer rumo ao chão. a ausência tão grande como as tantas belas obras de arte que teu pai pintou. cresceste tal como eu mas tivemos destinos diferentes. pisamos os mesmos paralelos. os mesmos passeios. as mesmas escolas. a mesma sala onde aprendemos a arte. tivemos os mesmos amigos. os mesmos desejos pela arte. mas nossos caminhos seguiram diferentes. hoje. chegou a saudade que guardo desse tempo. de quando em vez há um reencontro com outros artistas do nosso tempo. maravilhas dos anos 80 onde choramos lágrimas sentidas por alegrias e outras sofridas também por ti. no recordar trago penas pelas dificuldades que nunca te abandonaram. o que habitava em ti eu sei. não passava do grande desequilíbrio emocional ganho em arte gigante desde a tua infância. falta afecto de quem era um modelo para ti. senti tudo tão de perto. a vida é tão incerta! uma casa. um talento poderoso. arte. e nos bolsos o pobre mendigo desfeito em sofrimento. talvez fosse o cansaço que te derrubasse. ou lágrimas que tua mãe derramou sobre ti. desilusão. desamores. criança infeliz. a falta do pai e uma ausência por companhia. uma vida inteira. faltou tanta coisa mas o amor de tua mãe não. por paixão sei que também esgotou e se entregou. lembras? da malagueta que teimaste em aposta. comeste-a inteira. estávamos no quarto ano do liceu. como correste a beber água. chocante teu exibicionismo. uma chamada de atenção. estou aqui! lembras? como teus óculos embasaram pelo apimentado que dos olhos já vermelhos evaporava. maldita malagueta que fez rir a malta toda de preocupação. chumbaste aquele ano por seres calaceiro. eras bom no desenho, excelente em pintura tal e qual teu pai em Paris. fama aqui não. por seres tão bom pensaste errado o quanto te bastou. teimaste em não mais aparecer ás aulas. trabalhos não concluídos e uma professora tremer de preocupação. quarenta e cinco amigos de turma doídos por ti. chumbaste por seres o melhor da turma e foste a pior nota daquele ano! todos ainda choram por ti. depois. que foi feito de ti de vós? passaram tantos anos! teus pais partiram. teu irmão. mas tu não! o que ouvi. simplesmente continuar na herança que teu pai te deixouna genética. belas obras de arte. lindos óleos debaixo do braço tal e qual ele e no olhar. Paris. o sinal continua. vender. voar rumo ao Brasil e voltar sem a pipa de massa. pelo único proveito da boa mão. o belo sentir que te impulsiona na bela criação. o outro. teu irmão. na rua a pedir andou e se entregou. adianta ter um coração? e belos traços? lindos óleos da paixão e mão sábia? adianta olhos maiores quando a barriga só ronca e nada diz! adianta criar. ganhar e gastar boémias? adianta luxúria? quando no fim sobram pés e uma meia de cada cor. é esse o sinal de criança que em ti vi. hoje. presente infeliz. sentimentos sinceros eu deixo. não para ti mas para quem sem tempo não te viu crescer. foi grande homem grande arte lá fora não aqui. a pena deixaste eu assisti tão de perto. tu não. os dois que sobraram de ti, também meus colegas na arte. um tu que soube aguentar-se. vai e parte. gasta e volta. mas segue os mesmos passos. olha! acorda! tua mais nova tem todos os traços das passarelas. é linda! no entanto. faz hoje quinze dias obrigou-me a parar o carro. estava sentada no meio da estrada de pernas cruzadas. cabisbaixo. o que senti. mostra abandono. um pedaço de retrato família infeliz. tudo pela causa da arte. tudo a destruir.