Poemas : 

MESTRE CARTOLA

 
Numa noite, morando ainda no Rio de Janeiro, pelas mãos do poeta - Paulo César Pinheiro, e que poeta - entro no morro de Mangueira. Paulinho me diz, com a voz rouca, como um trovão de ressaca: "Você vai ouvir o maior poeta brasileiro cantar."
Duas cervejas. Uma dose de pinga. O negro alto, magro, espigado, não pedia uma pinga, mas uma caninha ( não chamava pinga de cachaça.) Na mão, trazia um violão. A voz rouca dos cigarros fumados na madrugada.
- Me empresta um cigarro - ele diz.
Dou-lhe o maço.(Me deu um maço inteiro depois, que trazia no bolso. Não sem antes me perguntar se eu havia gostado de Ainda é Cedo, Amor -uma das coisas mais lindas que ouvi. "Minha enteada virou puta, sabia?"
Eu fingi que não sabia, mas ouvi.
Fiz uma musiquinha. Quer ouvir?
Já a conhecia, como imortal, pela voz de Beth Carvalho, cantora premiadíssima.A voz deste senhor Angenor( de Oliveira, que nem Agenor teve o direito de ser, por erro de escrivão de cartório) ecoou a noite toda. Lembrei Manuel Bandeira, que talvez ele nem tivesse conhecido, mas que neste espaço onde escrevo, disse: "É o maior poeta brasileiro."
Por favor, ouçam As Rosas não falam...
Mestre Cartola.
Foi sepultado no cemitério de Inhaúma. Não sei se o Ecad lhe pagou os direitos para ser enterrado dignamente. Deixou a viúva Dona Zica.
(crônica publicada no Jornal do Brasil, novembro de 2002, por ocasião da morte de Cartola)


Júlio Saraiva

 
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Julio Saraiva
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 20/10/2009 11:30  Atualizado: 20/10/2009 11:30
 Re: MESTRE CARTOLA
amigo julio

a tua crónica é excelente, de ritmo & vida, de bas-fond, do pequeno pormenor que revela o todo, misturando o alto & baixo. a mim, deste lado do oceano, faz-me pensar como tudo isso seria aqui impossível. não há, nestas paragens, uma verdadeira cultura popular portuguesa. de vez em quando, alguém se lembra que tínhamos danças e cantos, e então fazem-se umas coisas que não interessam a ninguém a não ser a algum dedicado antropólogo. dizem que criamos o fado, mas as casas de lisboa estão cheias de estrangeiros para o ouvir, porque, verdade seja dita, ninguém aqui o suporta. Eça de Queirós, depois de falar sobre a cultura europeia, rematava uma crónica que escreveu assim: «Nós, por aqui, temos a tourada..» e nem a tourada agora temos, porque esse traço medieval já desapareceu quase por completo. o português é, por natureza, anti-artístico. o nosso instinto e a arte são incompatíveis. nossa personalidade é fechada, crítica e autocrítica, quase impossibilitada de fazer esse desdobramento do «eu» que toda a arte exige. o português não sai de si próprio, vive fechado dentro da própria pele. é por isso que, em poesia, o português faz isto: imita. ele não sente «a aurora rósea do céu aberto»; ele, simplesmente, acha que isto deve soar bem e muito interessante e por isso o escreve. dizem que uma das nossas primeiras capacidades é a de nos transformarmos em outras culturas. um emigrante português aprende a nova língua em pouco tempo. alguns académicos, sempre fixados nos mitos, defendem que vem dos tempos dos descobrimentos, que isso ficou na nossa raça, essa apetência para nos integrarmos em outras culturas. mas não é nada disso. simplesmente, não existe uma cultura popular portuguesa, o nível cultural é tão baixo como o chão e, por isso, o português tem facilidade em aprender coisas novas, porque não tem necessidade de esquecer outras tantas. e, com isto, basta de bater em Portugal – que é um dos nosso traços, também, culpar este rectângulo de todas as infâmias.

um prazer ler essa crónica, caro julio.


abraço