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A desgraça do Brasil somos nós: brasileiros

 
A desgraça do Brasil somos nós: brasileiros

Muitos lugares e situações são importantes e interessantes quando queremos pensar a nossa realidade como nação. Mas a fila do banco, sem dúvida, é um dos melhores laboratórios que há. Sempre que vou a essa bendita instituição, sinto-me como se a realidade despencasse sobre mim em borbotões de uma cachoeira. E hoje não foi diferente...
Cheguei ao lugar por volta das dez e meia da manhã, e entrei; peguei uma senha; horrorizei-me com a quantidade de gente que estava a minha frente na fila virtual dos números, e resignei-me em uma das muitas poltronas postas ali, diante dos caixas, justamente com o fito de confortar-nos diante da demora; remédio bastante eficaz, diga-se de passagem.
Nessas horas, a gente fica perscrutando o lugar, olhando as feições, os cartazes mentirosos, cheios de sorrisos e promessas falsas, o movimento dos funcionários, uma azáfama só, tentando destruir as leis da matemática enquanto buscam esticar os segundos com os seus gestos mecânicos e ligeiros. O absurdo já começa por aí, centenas de clientes e apenas três funcionários para nos atender!
Eu observava essas coisas... a minha senha com o número “232”, o painel indicando “190”, e aquela infinidade de cálculos improváveis me apoquentando; foi quando chegou uma criatura meio de pressa.
Na verdade, ela só deveria ser mais uma personagem em meio a tantos, mas o ser conseguiu se destacar. Assim que a mulher atarracada se aproximou do caixa, o homem que estava ao meu lado se pôs de pé mastigando entre os dentes “tem que ficar velhaco com essa mulher”. Essas coisas sempre nos chamam a atenção, e eu fiquei observando.
A criatura rotunda saracoteou daqui, escanchou no balcão e conversou ao pé d’ouvido com um funcionário ali e, logo já estava ao lado de um caixa. E eu de olho...
Então veio o primeiro absurdo. Uma senhora se levantou, provavelmente amofinada com a demora no atendimento, e deu, à criatura inquieta, a sua senha. Na hora me mordi. Pensei, a velha nojenta se levantou, com raiva pela demora, mas se preocupou só com o tempo dela própria, pois com o seu ato, ela jogou a criatura que havia acabado de chegar na frente de todos que ali estavam esperando pacientemente suas vezes de serem atendidos. Então me deparei com a segunda tragédia do dia; para as pessoas o sistema só interessa enquanto elas são beneficiadas imediatamente, pois se vão sair da fila já não importa mais de vai demorar mais ou menos para os que ficam. Então ela certamente tem um orgasmo só em pensar que um bando de trouxas esperou como ela, mas alguém será atendido antes de todos, só por que ela usou seu pouco poder para corromper a ordem da fila do banco (Ô, vaca!).
E a epopéia continuou. Aquele ser esquisito, disfarçado de gente, ali permaneceu e, assim que o cliente que estava sendo atendido saiu do caixa, antes mesmo que aparecesse no painel o próximo número de senha, ela se abancou no tablado de madeira, abriu sua bolsa enorme, tirou um calhamaço de documentos, cheques, dinheiro e o (filho da puta do!) caixa a atendeu na maior normalidade do mundo.
Aí, sim, meu cérebro cientista começou a pensar, olhar, ver e interpretar tudo e todos em câmera lenta. Primeiro o caixa, um miserável estrábico que não se recusou a atender a fura fila. Em outros tempos eu sugeriria a forca para ele, mas, nos dias atuais, creio que uma bala achada já se faz bom profilático (Ô, raiva!).
Depois observei os circunstantes. As caras iguais, calmas, indiferentes. Será que só eu tinha visto aquilo?! Não. As pessoas estão acostumadas a serem vítimas de desonestos. Às vezes chego mesmo a me perguntar se devo me preocupar com a justiça social, com o bem-estar geral, enfim, com esses ideais que andam em voga. Afinal, eles próprios não se preocupam com sigo mesmos. O fato é que eu já nem poderia pensar em castigo mais adequado para aquele bando de acomodados, a não o que já recebiam quando não fizeram nada.
Então meu olhar se voltou para mim mesmo. E eu, o que deveria fazer?... Levantar da confortável poltrona e dar um escândalo? Colocar-me no caixa ao lado e exigir ser atendido antes da hora, alegando ter os mesmo direitos da fura fila? Ficar de pé sobre a poltrona e discursar? Amarrar um quilo de dinamite na cintura e explodir todo mundo? Não... Esperei calmamente para usar a arma que julgava mais eficaz.
Fui atendido, bem mais tarde do que deveria ser, graças à fura fila que empacou o caixa no qual se arranchou, saí e me dirigi a um funcionário e solicitei que me levasse até o gerente geral do banco. Sentei-me diante do sujeito, olhei, de novo, ao meu redor, olhei a cara do parvo.
Pensei...
Ao término da conversa ao telefone, o sujeito me atendeu. Expliquei o ocorrido; disse-lhe que eu poderia processar o banco, que qualquer um dos inúmeros clientes vítima do absurdo poderia processar o banco, por nos descriminar e preterir e, por fim, pedi-lhe providências. O cara me ouviu sorridente, agradeceu-me pela queixa; disse um daqueles chavões de campanha publicitária e, no fim...
Bem, no fim eu me senti um idiota. Obviamente a escrota fura fila é cliente antiga do banco; deve freqüentar os mesmos eventos sociais que o gerente parvo; o caixa deve ser orientado a dar atendimento preferencial à criatura esdrúxula; o povo apático deve assistir a tudo sem nada dizer só para ter assunto nas conversas frívolas do dia-a-dia. E eu perdi uma boa chance de dar um grito de basta, de pôr a boca no mundo, mover um processo contra o banco, ou qualquer coisa do gênero.
Fico pensando... a fura fila eu nem sei o que recomendar como ungüento para o mal. Acho que seres dessa estirpe nem deveriam existir, pois são, sem dúvida, atores importantíssimos na construção da nossa tragédia nacional.
Pode até parecer exagero, mas o problema desses pequenos atos é que eles são na verdade hábitos, e como tais fazem parte da vida toda da pessoa. No banco, furam fila, aceitam e colaboram com a desonestidade, assistem e se calam, e alguns ainda dissimulam com frases feitas e eternas promessas falsas de corrigir a falha.
Na vida cotidiana, o vício da desonestidade continua nos negócios públicos, na iniciativa privada, nas relações privadas, nas pessoais; e aí por diante.
Quer saber?... a gente fica discutindo economia, clima, oportunidade, justiça e até ação de deuses sobre as criaturas, mas, no fim das contas, o grande problema do Brasil somos nós, os brasileiros.



 
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Arcanjo
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