Em serena paisagem, um místico orvalho cai sobre o jardim onde modestas camas de mármore se estendem às centenas. Uma suave brisa acaricia as flores que se amontoam aos pés de tão humildes campas. Dizeres de amor e saudade são gravados já como ritual:“Descansa em paz”.
Paz… algo que esta alma cujo corpo jaz deitado dentro de um caixão de madeira em que nem as térmitas ou insectos se atrevem a entrar. Tresanda a morte, a injustiça, a violência e a raiva. Sua tez já tão pálida que quase transparente, notam-se as veias azuladas onde outrora correram litros de tépido sangue vermelho cheio de vida e paixão.
Ceifada de forma brutalmente violenta, inesperada e sem razão, a sua alma escavava o seu caminho para fora daquela campa imunda e fedorenta.
Após inúmeras tentativas, finalmente, o brilho prateado do luar furou a terra que se amontoava por cima daquela singela caixa castanha. A terra húmida e fria deu de si e abriu alas para que um sôfrego grito se soltasse. Evadiram-se vapores como géisers vulcânicos presos há anos vindos do mais escuro centro da terra.
Desconhecendo ainda a sua forma incorpórea, aquela alma penada soltou-se e desatou de correr desenfreada pelo meio da neblina. Lágrimas corriam-lhe pelo rosto, formando riscos debutados à medida que a face ganhava expressões de inconformidade, dor e raiva.
A inocência ficou na campa.
Nada senão vingança se instalava naquele ser. Em tempos fora filha, fora irmã, fora amante… e por último, vitima.
Flashes incessantes de um cenário agressivo e grotesco de gritos, de dor e sangue tomavam conta de todo o raciocínio lógico que lhe restava.
Vingança era a única coisa que prevalecia.
Instintivamente, seguiu o rasto do seu assassino. Sentia ainda as suas mãos a apertarem-lhe o pescoço, ainda mantinha o sabor salgado das gotas de suor que lhe entraram na boca enquanto a tinha aberta a berrar por ajuda, a pedir clemência.
As luz dos carros que se cruzavam na estrada encandeavam-na fazendo com que abrandasse a corrida e cambaleasse pelo asfalto, a sentir a sujidade da borracha dos pneus gastos e restos mortais de cadáveres dos animais mortos à beira da estrada em seus pés feridos e nus.
Deambulou horas sem se cansar, apenas a vingança lhe corria nas veias sobressaídas da pele, o motor que fazia aquele corpo materializar-se e mover-se de forma tão invulgar, desumana.
Sentiu-lhe o fedor finalmente. Gargalhadas sonoras ecoavam ao longe e penetravam-lhe a mente de forma hipnótica, seguiu-lhes o eco.
Os seus olhos esverdeados, já quase incolores, semi-cerraram-se e a sua respiração acelerava à medida que alargava as passadas. Consoante inspirava, ao expirar, um rosnar animalesco ia-se tornando cada vez mais forte. Inicialmente assemelhava-se a gemidos, mas à medida que se aproximava o assassino, transformava-se em gritos destorcidos vindos das entranhas de um corpo sem vida.
Nem as portas trancadas do seu lar impediram que entrasse.
Já dentro do quarto daquele ser inclassificável, parou aos pés da cama e cerrou os punhos com tanta força que as unhas, já amarelas, se cravaram na pele libertando espessas gotas de sangue vermelho-escuro no chão de madeira, deixando nódoas que jamais sairão, cravadas no soalho.
Como se tivesse premido um botão para acelerar a imagem, rapidamente se aproximou do corpo deitado sobre a cama, sem quebrar o silêncio.
Aproximou-se da cara pacífica dele, sentiu-lhe o bafo que lhe trouxe à memória as imagens inesquecíveis de quando o sentiu a violar as narinas onde se alojara até aquela data. O frio que emanava do corpo fez com que o homem que dormia sentisse um arrepio e se ajeitasse ligeiramente. Ao mover a cabeça, roçou ao de leve, face a face com a defunta. Abriu automaticamente os olhos e deparou-se com os dela, cheios de chamas de raiva a brilhar no escuro como duas estrelas polares na noite.
Sem que sequer tivesse tempo de reagir. Sentiu o terror trespassar-lhe a goela. Sentiu a barriga rasgar-se conseguindo ainda ouvir ruídos viscosos das próprias tripas a escorregarem para os lençóis. Sentiu tudo o que tinha provocado a outro ser, com juros.
Os lençóis ficaram tingidos de vermelho, e antes que soltasse o ultimo suspiro, antes do último batimento cardíaco, ainda foi a tempo de ouvir os gritos aflitivos daquela entidade que lhe sugava a vida com todo o rancor que restava e as seguintes palavras em surdina:
“Assassino!
Porque?
Responderás no inferno que lá nos encontraremos.”
A história repetir-se-á até que esta alma tenha paz… provavelmente, nunca terá, até ao fim dos dias.
O primeiro conto de terror