Poemas : 

Receita, comentada, para um inferninho diário

 
- Começamos com alguns gramas de chateação de terceira qualidade. Na verdade esse item não possui medida exata, depende do grau de suportabilidade do outrem.

- Você, antes de mais nada, deve criar uma situação em que a outra pessoa deva dar uma freada nas atividades corriqueiras. É aí que você se insere.

- Proponha estar junto, diga que fará companhia, que ajudará (independente da vontade dele(a)); e siga lado a lado com a criatura felizarda que você escolheu.

-É importante manter a frivolidade; sempre que a outra pessoa tentar desenvolver algum assunto mais sério ou construtivo, intervenha e interrompa com algo sem sentido ou desnecessário.

- Após essa primeira etapa, acrescente cinco gramas de lembranças velhas e aparentemente superadas. Esse item é especialmente importante, pois, quanto mais rançoso, mais você poderá prolongar suas queixas sobre ele(a) e muitos outros infinitos aspectos da personalidade do infeliz ser para quem você dedica a receita.

- Um detalhe importante a se considerar, no começo, deve-se só fomentar tolices, mas é preciso manter um mínimo de inteligência para acrescer à conversa esse útil ingrediente.

- Pois bem, chegada de sopetão a memória pútrida que já era julgada esquecida, introduzimos nosso terceiro, e composto, item, a incompreensão, mesclada com uma forte dose de acusação. Assim vai a receita encorpando. Fale, fale, fale muito. Aponte um milhão de vezes as mesmas coisas; repita pelo mais longo tempo que for possível.

- Então, logo em seguida, coloque a mais generosa porção de auto-piedade que puder. É importante ter toda a pena do mundo de si mesmo(a), pois só assim será possível rejeitar qualquer argumento que busque uma reconciliação entre as partes, e com isso, fazer desandar o tão belo cardápio já até aqui preparado. Observa-se aqui que a eficácia desse ingrediente é algo miraculoso, pois ele dá a você o poder de proteger o seu tão esmerado prato. Se a pessoa te falar, chore; se ela se calar, chore; se ela sair, chore, se ela ficar, chore; se ela continuar existindo, chore; e se ela abreviar sua existência dela, chore; mas sempre por pena de si mesmo(a). O choro é um ingrediente mortal e demoníaco. Aliá, para muitos especialistas, a auto-piedade está entre os ingredientes mais importantes desta receita e jamais deve ser usado com moderação.

- juntados todos esses ingredientes, você já perceberá que o prato ganhou forma; então restará mexê-lo. E aqui entra um conselho quase científico, uma máxima religiosa: não bata. Misture tudo lentamente, pois, se bater, você corre o risco de despejar, lançar fora a fúria, o rancor, a mágoa (o que seria um desperdício terrível). O ideal é que se mexa tudo muito vagarosamente, para que ocorra justamente o oposto do que se adverte, ou seja, para que, na lentidão do exercício, concentre-se todas essas iguarias que darão um toque bem refinado ao nosso prato: raiva, incompreensão, fúria, rancor, auto-piedade, sadismo e mais uma infinita gama de possibilidades.

- Para concluir nossa receita, informamos que a mesma se destina a duas pessoas; há quem tenha conseguido expandi-la para mais felizardos, porém, o que se busca hoje em dia é a quantidade: quantidade de dias ativos de inferninho. Existem relatos de verdadeiros mestres que o prolongaram por mais de semana. Isso mesmo, mais de semana! E você, o que está esperando? Quanto tempo será que consegue?

 
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Arcanjo
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