Encontro-te sentada no jardim com uma expressão vazia. Olhas-me de soslaio como se não me visses. Dou-te um beijo e pergunto-te com a ligeireza das palavras despidas de convicção:
- Então… miúda? Deliciaste-te com a bela paisagem?
Não me respondes o que é sempre um péssimo sinal. Limitas-te a sorrir com aquele sorriso triste que sempre me dilacerou a alma.
Com as palavras as esbarrar nos muros do silêncio, ponho-me a interrogar-te em pensamento enquanto te observo:
- Porque és tão depressiva, miúda? Porque sorris como quem chora a um recanto, teimosamente sozinha? Porque te fechas nesse casulo hermético e não deixas que nos aproximemos de ti nem com o roçar de uma qualquer pena de pomba, que o vento roubou?
Separam-nos 12 anos. Revejo-te como se um filme desenrolasse repentinamente sobre os meus olhos. Momentaneamente vejo-te pequenina nos meus braços. Eu certamente estarei com uma expressão meio aparvalhada a obedecer à ordem expressa da mãe.
>> Muda-lhe a fralda, senão essa chorona não se cala…>>
E tu, sempre a chorar… sempre a chorar… como se fosses um mosquito impertinente a querer violar a tranquilidade do meu sono. Sempre foste assim, chorona. Até quando eras pequena.
Será que nasceste num dia de dilúvio?
Caramba…! Mas agora, porque choras?
As feridas não são para ser lambidas mas antes para serem curadas e logo depois deixar que as cicatrizes disfarcem a dormência com que elas às vezes nos presenteiam no seu latejar constante. Ouviste?
Apetece-me gritar contigo. Ralhar! Aliás… eu só consigo chorar ao pé de ti, através daquilo que escrevo a pensar em ti. Sempre…foi assim...! Sempre...
É uma espécie de orgulho tolo que tenho. Eu sou a mais velha. Tenho que inventar a tal segurança que a família quase exige de mim, como se eu fosse uma psicóloga social, a quem pagam com sorrisos, outras vezes com silêncios e cumplicidades indisfarçáveis. Sempre fui e serei a psicóloga que a família resolveu contratar desde os mais tenros anos da minhas existência. E eu? Quem trata de mim? Quem procura as melhores terapias para mim? Bolas, e eu? Que super mulher sou, que me desfaço em cansaço e lágrimas, como se fosse uma boneca de barro? Pronto, OK. Sou a Super mulher de barro. Porque não?
Se soubessem o quão é pesado isso… talvez me descobrissem nas minhas fragilidades e me poupassem a tanto heroísmo podre!
Pergunto-te de rompante. – O que foi desta vez? Achas que a solução é vires para o jardim como se mirasses flores num deserto inóspito?
- Num deserto quê? – olhas-me quase que aparvalhada e eu remato à laia de bobo cansado.
- Num deserto onde só há areia e miragens, caramba. Falo Chinês?
Desta vez sorris… porque pressentes que estou mesmo danada.
Dou-te umas quantas reprimendas enquanto impenetravelmente me ouves, agarrada aos teus muros de silêncio, como se fosses um naufrago orgulhosamente confuso. De quando em vez um vento morno traz-nos o perfume suave das rosas amarelas, orgulho indisfarçável do pai, que as namora com a devoção há muito reclamada pela mãe.
São tão belas as rosas! O seu perfume inebriante é quase que uma bênção nesses momentos.
Tenho a nítida percepção que pouco mais irei arrancar de ti nesse momento. Puxo então do bloco e de uma caneta que dormem no fundo da minha carteira o sono dos eternos.
Começo a conversar contigo da forma que mais aprecias. Pelas palavras escritas.
Acho que já descobri a razão… dessa tua estranha preferência mas ainda não tenho a certeza. Um dia destes pergunto-te, só que arrisco-me a ficar sem resposta.
- Será que preferes assim para não me veres chorar a mim? Começo então a escrever no papel uma carta.
Miúda chorona:
Saberás acaso o quanto me preocupo contigo? Saberás que todas as inquietações por mais tenebrosas que nos pareçam são sempre ultrapassáveis? O nosso coração por vezes é um traidor, por isso há que lhe dar a relevância que merece, ouviste? Por uma questão de inteligência e de defesa, é bom que aprendas a fazê-lo!
Nada é irreversível, só a morte! Portanto… sejam qual for os teus males, as tuas dores, as tuas inquietações ou dúvidas, tudo tem uma solução. Nem que tenhamos que a forjar para que tenhamos o sossego que merecemos. Estou farta de te dizer que dos fracos não reza a história. Caramba… e é de facto assim!
Falam do Vasco da Gama, do D. Sebastião e de outros réis sem rainhas a quem deram grande relevância! Sim... E os Plebeus? Não houve heróis entre eles? Não eram feitos da mesma carne ou eram simplesmente filhos de Ninguém?
Quem se lembra dos que morreram em combate? Dos que foram carne para canhão? Quem fala deles e quem os homenageia como eles mereceriam?
Talvez o façam por um descargo de consciência através de uma qualquer lápide repleta de musgo, num qualquer quartel, cheirando a botas de borracha e a suor. É o suficiente? É aí que são homenageados? Porque não fala deles a história universal?
Porque tudo não passa de uma HIPOCRISIA COLOSSAL!!
Para os políticos da democracia são e serão sempre apenas soldados (bravos) repetidamente(bravos) e nada mais do que isso.
Para os ditadoras serão um numero ou (com alguma sorte…) um nome.
Queres maior exemplo do que esse? Decididamente dos fracos não reza a história porque até os bravos são esquecidos e espezinhados como se fossem cobras indesejáveis. Percebes isso, caramba? Não tenhas pena de ti própria. Ama-te sobretudo porque se assim não for poucos ou ninguém te vai amar verdadeiramente.
Mesmo que muitas vezes tenhamos que fugir de nós mesmos, como se fizéssemos uma viagem cósmica sem retorno, nunca desistas de ti… por mais que a realidade seja um paradigma.
Estarei sempre aqui… como sabes! À volta da tua concha querendo entrar no teu mundo fechado. Não quero que me abras a concha toda porque podes constipar-te de tanto te isolares. Só preciso que abras uma pequena aresta e deixes entrar um pouco a luz do meu olhar.
Adoro-te chorona!
(VÓNY FERREIRA 2006
Nota: Carta reeditada