Crónicas : 

A mulher que não mais rezou

 

- Sta Bárbara nos proteja – repetiu Matilde ao enésimo trovão que se abateu sobre a serra. O relâmpago que o precedeu abriu dia na noite escura recortando as árvores e o caminho pedregoso na sua memória imediata, ao longe via-se uma ou outra luz de um qualquer casebre resistente à intempérie. A chuva que lhe fustigava o rosto tingia-lhe de roxo os lábios finos e sulcava-lhe na testa rugas de resistência ao frio intenso que lhe comia os ossos. Os pés calçados de sandálias abertas já acusavam o esforço de suportar as pernas finas e retesadas pelo frio que se lhe incrustava na pele auxiliado pelo vestido de algodão empapado no sal do esforço. Mais um relâmpago, seguido de um trovão, mais uma imprecação em jeito de prece á Sta das intempéries, mais um passo, mais um esforço, mais um declive, mais um ramo solto que lhe corta a pele. A chuva aumenta o seu ímpeto, o espaço entre as faíscas e o trovão encurtam as distâncias a cada relâmpago. Matilde tenta vislumbrar o caminho sinuoso que se desenha serra acima e segue a marcha resoluta segurando a lancheira vazia e os sacos de fruta e legumes que o Sr. das terras lhe deu em jeito de paga da jorna nas vinhas.
O caminho encontra uma curva repentina num declive que logo sobe formando uma espécie de vale acoitado na encosta de mais um monte que se lhe segue. O pequeno casebre iluminado pela lamparina de azeite foi visão de paraíso aos olhos dela.
- Graças a deus – agradeceu Matilde juntando mais uma prece á Sta da sua devoção.
Abriu a pequena portinhola da entrada ladeada de pedra de xisto, pisou a laje também de pedra preta e sentiu uma dor repentina no rosto, que lhe atingiu a face direita e se prolongou para o ouvido, sentiu-a primeiro do que o som da estalada que se lhe seguiu que a fez cair desamparada no chão de terra batida da cozinha.
- Onde andaste? Isto são horas de chegar a casa? Estamos eu e os teus filhos sem jantar e a senhora na mandriice? – Matilde tenta ajeitar o vestido que lhe cola ás coxas finas e sem lustro curtidas pelo sol do dia e pelo frio da noite.
- Óh Home, tu não vês a tempestade que está que arrenega o diabo? O patrão mandou trabalhar até ao fim do dia e tive que abalar de noite para casa.
- Faz mas é a janta que ‘tou morto de fome e deixa-te de lamechices porra, as mulheres de hoje só se queixam. A minha mãe teve 7 filhos e nunca fez isto. Ainda ‘tás aí caralho? Não ouviste?
Matilde levantou-se silenciosa e começou a fazer o jantar, olhando pelo canto do olho o marido que mordiscava um pedaço de toucinho fumado enquanto esperava a comida atento ao que o rádio ia lamuriando ao som eterno de pilhas gastas.
Olhava os filhos encolhidos no canto da cama no fundo da casa cujas divisórias eram cortinas que se recolhiam ao acordar.
Matilde fez o jantar, pôs a mesa, serviu o marido e os cachopos, enquanto eles comiam veio cá fora de novo ao frio e alimentou os animais,meteu o dedo mindinho no cu das galinhas para vêr se haveria ovo, reparou com um pouco de sisal uma portada da janela que batia compassada com o vento, entrou de novo na casa fez as camas para o sono que se avizinhava cerrando as cortinas de forma a dar a intimidade necessária, ponteou as meias do marido para o dia seguinte, finalmente sentou-se á mesa e comeu o caldo que entretanto arrefeceu, entalou as couves com o pão duro que moeu com a mão para dar consistência á frugal sopa. O marido recolheu-se na cama e o seu ronco já ressoava no casebre quando deitou as crianças, não as beijou que não sentiu vontade mas obrigou-as a rezar primeiro as três Ave-marias. Varreu a cozinha, lavou os pratos, limpou a chapa ferrugenta do velho fogão.
Ao sentar-se no balde com água para as abluções diárias, já com a longa camisa de noite vestida a noite ia alta, a chuva amainara, a trovoada passara. Ao cerrar os olhos na almofada de costas viradas para o homem lembrou-se que não tinha rezado as ave-marias…
- Para quê? – pensou ela e deixou que a acalmia da noite a invadisse. Decidiu nunca mais bendizer Sta Bárbara.

 
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jaber
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 08/10/2009 21:37  Atualizado: 08/10/2009 21:42
 Re: A mulher que não mais rezou
Texto de um frio realista que não seguramos na espinha.
Tu és excelente a escrever estes retalhos de vida. Fruto certamente das tuas muitas leituras de autores do género, mas sobretudo porque conheces cada palavra na sua expressão máxima de vida.
E eu fico aqui a contar botões na espera do dia em que tomes a sério a escrita.


Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 08/10/2009 21:56  Atualizado: 08/10/2009 21:56
Usuário desde: 02/03/2007
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 Re: A mulher que não mais rezou
Uma realidade tão nua e crua, quanto a verdade que li em cada palavra tua desta passagem de uma triste vida, que não me é de todo desconhecida...
Quem vive ou viveu no campo, conhece histórias parecidas e assistiu bem de perto a cenas como estas que aqui tão bem retratas e que por certo tocarão o sentimento de quem te ler, não podendo de modo nenhum deixar de sentir emoção.
Vivi numa aldeia remota, perdida na serra do açor, até aos dezoito anos e tinha como vizinhos um casal que bem poderia ser este que aqui falas...
Para cúmulo o chefe da família era um bêbedo incorrigível que passava metade do ano ébrio(pelo menos enquanto os pipos tivessem vinho). Para ajudar à festa, ainda possuía uma caçadeira que fazia questão de mostrar e com a qual ameaçava toda a gente.
Tanta vez que aquela desgraçada teve de fugir de casa com os filhos atrás dela!

Muito boa a tua escrita, Jaber!

Beijo


Enviado por Tópico
HorrorisCausa
Publicado: 08/10/2009 22:01  Atualizado: 08/10/2009 22:01
Administrador
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 Re: A mulher que não mais rezou
olha..vais ter que me desculpar, é que para uma mulher que não mais quis rezar o texto é longo e não estou nas melhores condições para ler...depois volto e quiçã a convença a rezar novamente.

beijo


Enviado por Tópico
Conceição Bernardino
Publicado: 08/10/2009 22:13  Atualizado: 08/10/2009 22:13
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 Re: A mulher que não mais rezou
um texto de cortar a respiração.

beijo


Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 08/10/2009 22:45  Atualizado: 08/10/2009 22:45
Colaborador
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 Re: A mulher que não mais rezou
...de uma (ainda) triste realidade, fez-me lembrar o Gedeão com a sua Calçada de Carriche "anda luisa, luisa sobe, sobe a calçada". A reza, pouco pesa, que a agricultura do jeito que vai, não dá para mais que saco de "fruta e legumes". Mas mais do que isto, é a realidade socológica que ainda perdura, e que texto, inciso, fere...

abraço fraterno
arfemo


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 09/10/2009 16:29  Atualizado: 09/10/2009 16:29
 Re: A mulher que não mais rezou
Soberbo!
Esta era a vida de muitas mulheres em tempos idos!
Hoje ainda deve haver por aí algumas que sofrem o mesmo.
Achei o final espectacular!

Abraço

Enviado por Tópico
HorrorisCausa
Publicado: 09/10/2009 16:43  Atualizado: 09/10/2009 16:43
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 Re: A mulher que não mais rezou
...o prometido é devido.

são muitos os contornos da violência doméstica que atravessa gerações, lugares e condição, espelhado num texto quase cruel de tanta veracidade que nem há orações que possam minimizar o sofrimento das vítimas.

beijo

Enviado por Tópico
Caopoeta
Publicado: 17/10/2009 16:47  Atualizado: 17/10/2009 16:47
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 Re: A mulher que não mais rezou
..recordas coisas da aldeia ,jaber.
uma nostalgia paira por aqui neste espaço..nao deveria ser triste porque estas Mães sao de guerra feitas.
valerá sempre a pena falar destas recordaçoes ... dos tempos em que (pelo menos) nao faltava o leite da vaca do tio Gil nem o pao que a mãe em casa amassava. e que o Natal era cheio de vida.



abraço.