Eu era mais um coitado
Nem vivia como gente
Andava de lado a lado
À procura, descontente.
Eu era mais um gago
Julgavam-me demente
Esquecido do passado;
Esquecido no presente.
Eu era um pobre diabo
Sem Deus e sem mente
De cabelos polvilhados
Com a boca sem os dentes.
Eu era mais um cansado
Vendo a vida: impotente...
Uns vivendo tão recatado!
Outros vivendo tão diferente...
Sim, eu era mais um coitado.
Tendo só desgraças pela frente.
Vivendo em volta do pecado
Voltando a pecar novamente.
Eu não era mais um regenerado.
Nem era um ateu pouco inteligente.
Eu era mais um da vida roubado
Por um outro vadio, indevidamente.
Eu era mais um revoltado
Com doze balas no pente
Perdoe-me... Isto é um assalto!
É quase natal e meu filho quer presente.
Eu era mais um enganado
Não era sequer remetente
Eu era um rio parado...
Não. Eu era luneta sem lente.
Eu era, dos homens, desconfiado
Depois percebi, obviamente,
Que era um jogo desequilibrado
Que quem só perdia era a gente.
Eu era mais um desgraçado
Sem o pão que o alimente
Eu era o outro desesperado
Numa fila (comprida) doente.
Eu era mais um equivocado
Sem pátria, sem continente
Sem - tudo: sem-teto, descamisado,
Mendigo, sujo, indigente.
Sim, eu era tudo isso: palhaço,
Idiota, sem cultura, mas inocente
Do jogo em que tive que perder, obrigado
A jogar o jogo desigualmente.
Eu era um velho aleijado
Pela vida, sem meus entes,
Um corpo num quarto jogado
Com os sonhos ainda quentes.
Eu era um pássaro alado
Vivia voando livremente
Um dia fui capturado
Trancafiado por eternas correntes.
Eu era... Você!
Gyl Ferrys