A bem dizer, já não durmo desde o ano de dois mil e três. nem a merda dos medicamentos nem as noites intensas de sexo com as putas mais variadas me põem a dormir feito consumidor de cannabis, que sonha com tudo, menos com a realidade realistíca.
se fecho os olhos duas três horas é caso para olhar para o céu a ver se não estão a passar os três reis magos montados nos seus camelos a gasóleo. em dois mil e três coincidiu com a recessão do país e com o processo judicial sobre uma crónica que escrevi num jornal clandestino, mas que fora descoberto o director, e ele, burro, bufou.
escrevi uns ataques bombistas sobre quem anda ou quem tem pretensões de comer pela gamela cheia. nunca mais fui o mesmo.
escrevo como se tivesse uma pistola apontada à nuca. mas nem por isso eu temo vir de novo aqui, sem colete à prova de bala, caneleiras ou coquilhas nos tomates. sou livre, mesmo nas minhas contradições.
o nascimento coincidirá com o dia da minha morte, disse-me uma mãe-preta espiritista que, pela dimensão da bunda, deve ser lá para os lados da guiné-bissau. certo ou errado, com aquela brincadeira alcancei o desnorte. percorri ruas e ruelas, passei por chulos e paneleiros (mas não daqueles que fazem panelas), chutei pedras à péle e marquei golos em contentores. cheguei ao meu apartamento de merda, deitei-me na cama de papo para o ar e os meus pensamentos circulavam entre Kabul e Babilónia, fugindo de rocktes que, por ora, metafísicos, pensando, que mal fiz eu, caralho? toda a noite sem dormir, sempre com a frase na memória, que a velha preta me disse com sotaque de algum antepassado meu.
morrer já me estou nas tintas, mas agora, dizerem-me que eu caminho morto nesta vida..., é assunto para duas garrafas de gim. e assim foi, copo a copo, cigarro a cigarro, tosse pelo meio, a paisagem sem ajudar nadinha, pois daqui desta varanda só vejo ciganos no tráfico e outros esquemas. ainda para mais, o cemitério, que se botar mais o pescoço fora, vejo-o na sua totalidade.
antes de vir para aqui, provocava deus, agora tenho mais respeitinho. sei lá por quê, ou da puta da idade ou das coisas que assisto por aqui em directo com estes dois olhos de quem já viu muito insecto a fornicar.
a coisa andou assim noites e noites, os meus amigos notaram uma queda significativa no meu humor, sobretudo nas falhas de memória e na vontade excessiva de botar a pila de fora para mijar. o meu diagnóstico, visto ao meu espelho, era de múltiplas decadências, um aspecto medonho, entre morto-vivo. logo me havia de calhar um pensamento daqueles!
chamei uma puta a casa, mas só para conversar. as putas sabem falar de tudo, excepto da história de portugal, pois para elas quem morreu morreu e não vale a pena falar deles. contei-lhe as minhas mágoas, tão frias que congelava-me lábios à passagem de cada palavra. fiz um pequeno teatro mudo, também.
ela acenava ora cabeça ora com as mãos a quererem brincadeira. uma hora passou-se e, como sempre, a resolução dos problemas é um caso para depois. é como cantar dentro de um poço. ninguém nos ouve, ninguém quer saber a que cão pertence aquela coleira. palavras e mais palavras e, a patrícia, nome fictício de certeza absoluta, quis-me curar da ressaca sentimental com um valente broche.
e eu deixei.
sem precisar de fazer nadinha, apenas encostar os costados ao divã.
há muito que não me sentia calmo que nem um carapau.
a vida a colorir-se, a paisagem a tornar-se outra, o meu apetite por uma boa lasanha a surgir de novo.
o meu ser a recriar-se.
enfim, nas sete quintas do imaginário, os anéis de júpiter a decorar a sala, ao mesmo tempo que lhe amarrava pelos cabelos, e dizia-lhe «ai que me levas a tóquio com essa qualidade toda».
suava que nem besta mitológica dos lusíadas, de vez em quando, uns urros mozartinianos, e já no final, um grito de fazer parar o trânsito numa das ruas mais preenchidas de londres.
se o sorriso falasse diria com certeza «que maravilha!». depois de saco vazio, mandei a rapariga ir, com uma nota de vinte na mão, e que por favor não batesse a porta com força. assim foi. fiquei só na minha casota royal, mais a fulaninha que apresenta o jornal da noite.
o cheiro a fraldas por mudar parecia estar eliminado. na minha intuição eu seria um sheik israelita, bem acomodado na minha oculta miséria. não resolvi os problemas da minha vida, mas afastei-os sobrepondo pensamentos positivos. converti-me num ser social, mas a olhar para todos os lados.
alguns anos passaram-se e, num destes dias alguém se aproximou de mim com um abraço tão forte que com um pouco mais de força seria considerado tentativa de esganamento. era a patrícia, trazia um puto branquelas e sujo, pela mão.
olhei o sacaninha com ar crítico, aquele cabeça de quem aos vinte anos iria ficar careca dizia-me algo, o seu nariz meio esquizofrénico pôs-me a pensar, onde é que eu já vi um igual?
o puto ranhoso já sabia pedir, tanto que me cravou uma nota de cinco para guloseimas. eu não tive remédio, meti a mão ao bolso, rapei-o, e fiz a festa com um moeda. mãe e filho sorriram. o sol estava como deus prometeu, embora a minha vida varie entre um sucalco de lamentos e o cravar aos fins de semana a minha velha que está asilada.
o puto, apesar de ser tão novo, parecia ter a escola toda, irriquieto como uma melga e, antes que ele abrisse a boca para dizer merdas, disse-lhe: vai chamar pai a outro! sem mais teatros, desandei.
por dias e dias andei bebendo ar à borla,
a enrolar fios de banana para fumar,
quando nisto, fui surpreendido por um mandato polícial para ir fazer o filho da polícia do teste da paternidade. dois homens fardados barravam a saída, não tive alternativas.
nesse momento perdi anos-luz-de-erecção. raios!, e eu que pensava que surpresas eram só em dia de anos. a preta tinha razão. eu nunca mais fui o mesmo.