Comentário a "Reis, princesas e infantes", de JorgeSantos
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2/10/2021 14:11
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"Reis, princesas e infantes", de JorgeSantos

Foge de mim um sonho
Que é ter mando e ser rei
Dos anfíbios e das charcas,
Mas a chuva só cai longe

Os barcos não me levam
Onde há sapais e charcos,
O meu grande desejo é
Escutar de noite e sempre

Infantas que foram agora
Sapas e eu rei das poças
Nem, quanto mais ouvi-los
Coaxar às noivas-infantas

Pedindo beijos nas bochechas
Gordas e verdes, ranhosas
Como sapos as têm, tolos
Anfíbios das poças de lodo

E eu nem rei nem bote
Onde nem sapais há ou charcas,
Foge de mim o sonho,
Que é ter mando ou sorte

De Reis, princesas, infantes …



Percurso pessoal de leitura nº 4 (se quiser conhecer os outros clique no link)

Quando me dedico à leitura de poesia, frequentemente sinto que resvalo um pouco para aquilo que Umberto Eco chama de "superinterpretação": uma entrega à "generosidade interpretativa" de cada verso que, inconscientemente, me orienta para caminhos de leitura que podem ser considerados um pouco exagerados, muito longe daquilo que o poema parece sugerir.

Um bom exemplo desta tendência pessoal ocorreu com este poema. Assim que li o título, a minha atenção concentrou-se na primeira palavra, "Reis", e associei-a imediatamente ao Ricardo Reis de Pessoa. Certamente estarei influenciado por outros poemas de Jorge Santos que lembram o poeta dos heterónimos, sobretudo pela estrutura externa e pelo vocabulário aparentemente simples, bem como pelo "detachment" irónico que perpassa pelas suas diversas "máscaras". Todavia, ao continuar a leitura, me fui apercebendo de outras articulações com a obra pessoana, que procurarei analisar mais à frente.

"Reis, princesas e infantes" é um título que aponta para o imaginário infantil e também para a tradição popular -- os contos de fadas estão cheios de príncipes valentes e donzelas em perigo. Associo também o título aos jogos que recorrem a figuras da nobreza, como o xadrez e as cartas. Como veremos, no final do poema, a ideia do acaso e da sorte próprio dos jogos associa-se perfeitamente ao universo onírico deste poema, que surge desde o primeiro verso.

Podemos associar a palavra "sonho" a dois significados principais: um ligado ao momento de adormecimento e ao inconsciente; outro à ânsia de alguma coisa, a ambição de um desejo. No poema de Jorge Santos, o sonho é o poder sobre os anfíbios e as charcas. Estes três conceitos -- sonho, anfíbios e charcas -- estão interligados através de algo a que eu chamaria a "condição de estar entre".

O sonho é o estar entre a vigília e o mundo inconsciente, onde não reina a lógica, mas a imaginação. Quanto aos anfíbios, tanto podem viver na água, como em terra firme. Outra ideia afim desta é a das charcas. Sabemos que a água traduz a ideia de pureza e de purificação, mas nas charcas sobrepõem-se a sujidade e a opacidade. Com a chuva, acontece algo semelhante, pois estamos perante um dos elementos primordiais -- a água -- que se precipita através de um outro elemento primordial -- o ar. Na estrofe seguinte, temos os barcos que também estão entre dois mundos, atendendo a que são meios de transporte que permitem estar simultaneamente no solo (sobre o casco) e na água.

O "eu" deseja todas estas ambivalências, o "estar entre", traduzindo simbolicamente a vontade de abarcar tudo e o seu contrário. Repete-o obsessivamente de estrofe para estrofe numa estrutura cíclica, com efeitos rítmicos e imagéticos fortes, com a finalidade de fazer com que estas ideias perdurem na memória, seja na memória do próprio "eu", seja na do leitor. Todavia, este desejo é negado por três vezes: o sonho foge dele, a chuva só existe na distância, o barco recusa-se a levá-lo.

Se o sujeito poético não pode ser o claro monarca dos sonhos, resigna-se a, pelo menos, ser alguém que os experimenta indiretamente. Como? Escutando. "O meu grande desejo é / Escutar de noite e sempre". Escutar. Na escuridão, de todos os sentidos, é a audição que mais ordena. É com o poder de escutar que o "eu" enfrenta a noite assustadora, é assim que aceita a escuridão. Mais uma vez, vem-nos à memória Ricardo Reis: "Basta o reflexo do sol ido na água / De um charco, se te é grato." Desaparecido o sol, fica o reflexo da sua luz. Chegada a noite, tudo o que o sujeito deseja é ouvir esse cântico dos charcos, dirigido -- di-lo na estrofe seguinte -- às infantas.

Antes de passar à terceira estrofe, perderei um minuto com um pormenor que não sei se será muito relevante: a alternância entre charco e charca. Parece-me que o poeta brinca com estas duas palavras mais por causa da sua sonoridade do que por causa do seu sentido. O charco será uma simples poça de água, nascida espontaneamente e de pequena dimensão. Quanto à charca, trata-se de um reservatório de água criado artificialmente pelo homem. Esta diferença entre natural e artificial terá alguma intencionalidade? Não a sinto como fundamental, mas fica aqui o apontamento.

Chegamos à terceira estrofe. Já vimos que o desejo do "eu" é escutar as infantas, símbolo da inocência presente e passada em simultâneo ("foram outrora") -- a lembrar o "outrora agora" do poema "Pobre velha música" de Pessoa ortónimo, em que infância só é fruída verdadeiramente na/pela memória. Aqui, a delicadeza das infantas é associada ao desconcertante termo "sapas", uma inversão do célebre conto da princesa e do sapo. Será um momento de sátira dirigida aos sonhos do sujeito poético? A mim, lembra um pouco as figuras das "nursery rhimes", algo semelhante aos anfiguris portugueses, deliciosas homenagens ao absurdo. A propósito, Paula Rego -- cujas imagens aparecem por vezes associadas aos poemas de Jorge Santos -- publicou um livro mágico de ilustrações para "nursery rhimes", onde os sapos também têm lugar.

O resto da estrofe tem uma construção de grande complexidade a lembrar (novamente) Ricardo Reis, e a exigir uma explicação lenta e uma leitura paciente. Há uma anástrofe de grande alcance, em que várias expressões estão subentendidas (pelo menos, é essa a minha interpretação). A sequência seria a seguinte: "os barcos não me levam" "onde há sapais e charcos" "nem" (subentende-se "onde eu possa") "coaxar às noivas-infantas", "quanto mais ouvi-las". Assim sendo, o "eu" vê-se não apenas proibido de escutar as noivas-infantas-sapas, mas também de ele próprio lhes dirigir a palavra na mesma língua (o "coaxar"). Afinal este rei dos anfíbios, consoante avança o poema, cada vez se torna menos monarca e mais sapo, um ser ridículo entre outros como ele: gordos, verdes, ranhosos, tolos, no meio do lodo...

O "eu" reconhece que nada tem do que sonhou, corrompendo a conhecida expressão "nem rei nem roque", que se converte em "nem rei nem bote". Porquê "bote"? Talvez pelo seu significado habitual -- embarcação pequena, insignificante, mas determinante quando ocorre um naufrágio -- que remete para a redenção que se pressente que nunca chegará. Uma outra interpretação (mais arriscada) terá a ver com um significado que encontrei no Dicionário Aulete Digital -- a investida súbita de animal sobre a presa -- a lembrar o salto do sapo, a quem falta a energia para fugir ao destino que o cerca.

Desse ponto de vista, o facto de o poema terminar com a referência à "sorte" (ideia subjacente ao título, como vimos no início) parece acentuar esta conclusão: de que há uma sina que se impõe ao sonhador, por motivos que ele desconhece, uma sina que lhe tolhe os sonhos, que o prende à sua condição, como uma personagem de um conto de fadas que deixou de esperar por um "viveram felizes para sempre...", que sabe que não poderá alcançar.


Criado em: 8/6 9:38
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