Comentário a "La pure placenta du cœur", de Darwinantonio |
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2/10/2021 14:11 Mensagens:
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Link para o texto original " La pure placenta du cœur", de Darwinantonio abrigos afagos anoitecidos naquele olhar cheio de limos por não chorar a derrocada dos pingos prisão dos sonhos esquecidos sorvendo a geada dos infortúnios naquele olhar perfurado de mar ai menino de loiça e de feno tampando de branco os ombros com as asas arrancadas dos anjos vem para dentro eu prendo-te com um cordão agora dentro do peito ----------------------------- Percurso de leitura nº 23 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link) Ainda estou por compreender por que razão me comove tanto a foto que acompanha este texto. A solidão da personagem, com uma expressão esmagada pela tristeza e pela solidão – é assim que a vejo – com o rosto marcado pela vida em linhas que são mais cicatrizes que rugas. Um dia ensolarado, a vulgar calçada, ao longe algo que parece um estaleiro qualquer, acentuam essa tristeza e essa solidão, como se fossem banalidades a ignorar com o habitual "vai passar". Comecemos pelo título , numa língua diferente da do corpo poema, por razões que desconhecemos. Algo que encontramos em outros poemas de Darwinantonio. Por vezes, uma língua só não chega para tudo o que o nosso coração quer dizer... Passemos um segundo à volta da palavra "placenta" que, nas duas línguas, aponta para a formação de um novo ser, para o mistério do nascimento. Não será alheia a esse facto a escolha da letra "a", a primeira letra do alfabeto, para as três primeiras palavras do texto, também elas isoladas, sozinhas em cada verso como a personagem da foto. Como que a nos dizer que o poema nasce ali, em "abrigos / afagos / anoitecidos". Que melhor definição para "placenta"? O primeiro espaço que nos alberga e acaricia, protegido da tristeza e da solidão. Uma espécie de noite luminosa a contrastar com a claridade sombria da fotografia. Os restantes versos da primeira estrofe focalizam-se nos olhos, húmidos por ausência de choro, uma antítese que pode ser o espelho de uma secura interior, onde os afetos e as emoções desapareceram, para darem lugar à sensação de vazio, de morte interior. Pois não é a água o supremo arquétipo da vida? Na segunda estrofe, detenho-me na "prisão / dos sonhos / esquecidos". que é "sorvida" pelo "eu". Passamos do refúgio quente da placenta, para esse ambiente gélido ("a geada dos infortúnios") que, pouco a pouco, vai impregnando o sujeito. Que prisão é essa? Aproximamo-nos do cerne do poema: um mundo que se abre em permanente sonho, em "olhar / perfurado / de mar", em imensidão. Um mundo agora povoado pelo "infortúnio" ou seja, pela falta de "fortuna", que os romanos personificavam na deusa do acaso e do destino. Um mundo de fragilidade interior perante as forças do universo, que perderam a sua sublimidade e se cristalizaram em vazio. Na penúltima estrofe, surge a presença de um "tu", um "menino / de loiça / e de feno", símbolos de fragilidade e simplicidade. Haverá aqui um diálogo do próprio eu consigo mesmo quando criança? A interjeição "ai" deixa passar a ideia de preocupação ou de dor. Porquê ou por quê? Pelo vazio – o verbo "tampar" é usado para designar um espaço oco que é coberto – que é substituído por "asas / arrancadas / dos anjos", mais um símbolo da infância (como sabemos, muitas vezes, os anjos são representados por crianças). Como se a infância que se tenta recuperar assim o fosse de forma traumática (note-se o valor onomatopaico de "arrancar"), mas essencial para o estado atual de alma do "eu". Esse vazio que se tem de preencher transforma-se, na última estrofe, num convite. À criança, que regresse ao corpo arranhado do "eu", para ser presa ao seu peito, para nunca mais o deixar. Recordamos então o título "La pure placenta du cœur", literalmente, "A pura placenta do coração". Voltemos à placenta, que aponta para um renascimento, que se deseja genuíno e inocente, recriado agora não no útero da mãe, mas no próprio coração do sujeito poético, preso com um cordão (veja-se a subtileza na semelhança de sonoridade entre a palavra portuguesa "cordão" e a francesa "coeur"), talvez não o umbilical, mas o de um balão colorido, que uma criança ostenta com orgulho e alegria. E assim, reencontrada a infância, o rosto de rocha da fotografia, por um momento, talvez consiga esboçar um sorriso.
Criado em: 30/5 15:40
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